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Solidariedade, crise governamental e Covid-19

(Foto: Jens Schuleter/AFP)

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A solidariedade sempre foi um valor presente nas relações sociais humanas. Alguns filósofos consideram a solidariedade intrínseca à própria vida em coletividade. Com o desenrolar da historia, a solidariedade recebe status de direito e dever fundamental, figurando como núcleo das ações governamentais direcionadas aos cidadãos em escala global, especialmente com a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948.

Recentemente, sua relevância planetária é reforçada pelo advento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de 2015, os quais buscam direcionar a cooperação e o desenvolvimento internacional em favor da construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, por meio da implementação de 17 objetivos, que compõem uma verdadeira agenda social global.

Na Constituição Federal de 1988, a solidariedade está presente entre seus princípios fundamentais, como um dos objetivos da Republica brasileira, para compor as bases de fundamentação de um modelo de Estado Social, que prevê a participação ativa do poder público no campo social e econômico para proteção do bem comum. Ademais, esse valor encontra-se previsto em diversos artigos politicamente estratégicos do texto constitucional, tais como: as disposições relativas à organização do poder, consagrando o denominado federalismo cooperativo, mediante o qual os diferentes níveis de poder (central, estaduais e locais) devem atuar por meio de políticas públicas coordenadas e convergentes, promovendo a solidariedade entre territórios e cidadãos.

Toda a construção histórica e constitucional da solidariedade revela não apenas sua importância como norma, mas também como valor, que se transforma em realidade como uma espécie de guia orientador das ações de instituições públicas e do comportamento de governantes, para estimular o altruísmo e a cooperação recíproca nos vários setores da sociedade.

A concretização da solidariedade se torna mais evidente em situações de crise, como o momento em que vivemos atualmente, em que os distintos níveis de governo e os demais atores sociais (ONGs, corporações, comunidades locais, entre outros) devem prezar pelo respeito e auxílio mútuo como forma de superar os efeitos adversos causados pela Covid-19.

É dizer, entram em jogo o quadro de opções políticas para combater a Covid-19 e também a forma como elas devem ser gerenciadas considerando os diferentes interesses de governantes e governados no contexto de um país federal que pretende privilegiar o cooperativismo e a solidariedade.

Em uma análise singela, é possível distinguir duas opções políticas básicas para enfrentar a Covid-19, evitando que a sua propagação ocorra de forma descontrolada e implique em um colapso do sistema de saúde: 1. distanciamento social ampliado, recomendado pelo OMS e que exige o isolamento por parte de todos os setores da sociedade, independentemente de faixa etária ou profissão, e que pode alcançar o denominado lockdown (ou bloqueio total), interrompendo toda e qualquer atividade social de um país, região ou cidade por um determinado período de tempo; 2. distanciamento social seletivo (ou isolamento vertical), em que o isolamento atinge apenas os denominados “grupos de risco”, como idosos e pessoas com doenças crônicas; em tais casos, as pessoas com idade inferior a 60 anos ou assintomáticos podem circular livremente.

Por um lado, o distanciamento social ampliado diminui os riscos de um aumento exponencial de contágios e mortes, porém exige um grande sacrifício social e econômico. Distanciamento social extremo e a necessidade de suspensão de atividades produtivas, como o caso do fechamento temporário do comércio e de indústrias, têm um efeito adverso no campo econômico, potencializando um futuro quadro de recessão e desemprego, que desembocam especialmente no âmbito social, com o aumento progressivo da pobreza extrema e da marginalidade.

Por outro lado, a adoção da política de abertura social e econômica com o distanciamento social seletivo durante a crise da Covid-19 possui um impacto teoricamente diverso. O livre desenvolvimento das relações sociais e a manutenção da atividade produtiva em território nacional implicariam em um menor risco de perdas financeiras para o país, com a potencial preservação de sua competitividade e do volume de negócios necessários para a recuperação do quadro econômico estável no futuro diante de uma crise de efeitos globais.

No cenário político brasileiro, o presidente Jair Bolsonaro é manifestamente negacionista quanto aos riscos sanitários que envolvem a Covid-19, condenando as medidas de lockdown social adotadas especialmente por governadores de oposição em certos estados, e incentivando a implementação de uma política de abertura social e econômica, com um discurso claramente direcionado aos muitos brasileiros que perderam seus empregos nos últimos meses: “Mais cedo ou mais tarde, todos nós seremos infectados”, disse Bolsonaro; “podemos muito bem enfrentar esta crise como homens e sair para o trabalho. Sem trabalho, muito mais pessoas morrerão”.

Dentro dessa ampla base eleitoral, o discurso bolsonarista agrada também a uma grande parcela de pequenos e médios empresários, que pretendem colocar em funcionamento o mais rápido possível suas atividades para tentar sobreviver aos perversos efeitos econômicos da Covid-19. Em outras palavras, tal cenário implica em um maior número de contágios e mortes, mas, hipoteticamente, possibilitaria a continuidade de atividades comerciais e industriais com a consequente manutenção de empregos e sobrevivência especialmente de pequenas e médias empresas.

Na contramão das ideias de Bolsonaro encontra-se um grupo de autoridades públicas que defendem o distanciamento social com rígidas políticas de bloqueio, como o caso do governador de São Paulo, Joao Doria, que, focando seus interesses nas próximas eleições presidenciais, se tornou um dos maiores críticos da postura do presidente durante a pandemia, contribuindo para uma polarização e fragmentação da sociedade em um momento no qual deveria existir união e cooperação.

Um dos muitos exemplos marcantes da ausência de solidariedade entre nossos governantes na luta contra a Covid-19 foi constatado no momento em que o presidente Jair Bolsonaro decidiu incluir academias, barbeiros e salões de beleza como atividades econômicas essenciais, ato prontamente contestado e rejeitado pelo governador de São Paulo, que imediatamente declarou que não respeitaria tal decisão. Ademais, devemos recordar as demais contendas políticas que ocorrem atualmente entre o presidente e os demais poderes, assim como internamente, com as deserções concomitantes de dois ministros da Saúde – Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich – e de um ministro da Justiça, Sergio Moro, abalando a base de sustentação política de Bolsonaro. Esses fatos revelam o total descaso das autoridades públicas brasileiras na preparação do país para os impactos negativos da Covid-19, o que deveria ser realizado com a construção de um ambiente de conciliação e definição de um verdadeiro projeto político conjunto, que considere a estrutura solidária e cooperativa constitucional.

Como se pode notar, a adoção de medidas de distanciamento é extremamente complexa e varia de acordo com o grau de abertura ou bloqueio imposto pelos governantes dentro de seus respectivos campos de competência. Entretanto, é preciso ajustar tais opções às peculiaridades de cada território em que será aplicada, o que implica em um estudo aprofundado que envolve desde características culturais e socioantropológicas até pareceres econômicos e técnico-científicos seguros, para uma melhor definição dos protocolos e ações políticas a serem adotados no combate à Covid-19.

Certamente, as carências históricas do sistema público de saúde brasileiro, associadas à ausência de solidariedade entre autoridades federais, estaduais e municipais sobre as medidas de distanciamento que devem ser adotadas cooperativamente entre diferentes níveis de governo, converterão rapidamente o Brasil no epicentro mundial da Covid-19, ultrapassando os Estados Unidos em número de mortes, como previsto por estudos desenvolvidos pela USP e Johns Hopkins.

Sempre deve existir, então, uma ponderação no momento de optar pela modalidade de distanciamento a ser executada, o que deve ser determinado com base em certos dados, em informações fundadas na análise de riscos para agregar uma certa margem de segurança e previsibilidade do caminho a ser seguido. Isso não significa desrespeitar a ideia de solidariedade que deve existir entre governantes, especialmente em países federais como o Brasil, em que estados e municípios possuem autonomia política para gerenciar seus próprios interesses, respectivamente nas esferas regionais e locais.

Na perspectiva da solidariedade, não menos importante nesse período é o perfil conciliador que os governantes dos países duramente afetados pela Covid-19 devem demonstrar para enfrentar a crise. Superar divergências políticas, econômicas e ideológicas, interesses pessoais e eleitorais e evitar as famosas barganhas políticas são fatores decisivos para guiar a sociedade em um ambiente que favoreça a união em vez da divisão e do conflito, para atender efetivamente as necessidades coletivas, buscar o bem-estar social e, principalmente, proteger o futuro da nação.

Portanto, a realização de esforços conjuntos por meio de ações coletivas comuns que pretendam afastar os riscos presentes e futuros da Covid-19 – ressalte-se, a maior crise da humanidade desde a Segunda Grande Guerra – é dependente do pensar e agir social em termos de gênero humano e não com barreiras, diferenças e discriminações. Mais que buscar a igualdade ou liberdade, devemos concentrar nossos objetivos nesse momento na solidariedade e no altruísmo.

Ernani Contipelli é professor de Relações Internacionais na International Business School The Hague (Países Baixos).

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