A dor do outro só é devidamente sentida por nós apenas quando imaginamos que a mesma tragédia pode vir a acontecer conosco ou com nossos conhecidos

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A raiz da palavra compaixão traz a ideia de uma comunidade de sentimentos capaz de nos levar à comoção diante da tragédia alheia. Indivíduos não atingidos diretamente por uma determinada adversidade desejam minorar a dor do outro ao sentir na carne um infortúnio que não é propriamente seu. Um tsunami varreu parte do Japão, enquanto boa parte dos brasileiros tomava café da manhã.

As imagens da tragédia nos chocam, sem dúvida. Mas seriam capazes de nos comover a ponto de gerar comiseração? Seríamos capazes de importar a dor dos japoneses, trazendo-a para nossas vidas cotidianas?

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A depender do juízo de alguns pensadores antigos que se dedicaram à compreensão da natureza humana, a resposta é não. Isso não é, porém, resultado de uma insensibilidade endógena dos brasileiros, ou mero egoísmo de um povo tradicionalmente caracterizado como solidário: trata-se simplesmente das implicações morais da distância.

Em um livro brilhante, o antropólogo italiano Carlo Ginzburg faz instigantes reflexões sobre o tema. Ginzburg recorre a um trecho da Retórica, de Aristóteles, em que este analisa as várias emoções empregadas pelo orador na tentativa de convencer seus interlocutores. Acerca da compaixão, Aristóteles destaca que, em geral, as coisas que inspiram o temor acabam por suscitar piedade, quando acontecem aos outros. E exclama: "Como suscitam piedade as desventuras que parecem próximas". Mas arremata dizendo que aquelas que aconteceram há 10 mil anos, ou aquelas que acontecerão daqui a 10 mil anos não causam piedade, ou fazem em medida muito menor, uma vez que não podem ser esperadas, ou não podem ser relembradas.

No caso da inveja, o pensamento de Aristóteles segue a mesma lógica: os homens só invejam aqueles que são próximos no tempo, no espaço, por idade ou reputação. Em outros termos, o filósofo está chamando a atenção para o fato de haver limites cronológicos e geográficos para alguns sentimentos. A distância – seja no tempo ou no espaço – tem a magnífica capacidade de atenuar nossas emoções, levando, ao limite, à frieza extrema. David Hume, no Tratado Sobre a Natureza Humana, diz que a quebra de um espelho em nossa casa nos preocupa mais do que o incêndio de uma casa distante uma centena de léguas.

Em seu livro, Ginzburg lembra também de um exemplo contemporâneo. Cidadãos alemães, recrutados pelo regime nazista para se tornarem assassinos contumazes, quando se deparavam casualmente com judeus que haviam conhecido no passado, não conseguiam cumprir suas tarefas de maneira adequada. Hesitavam em prender ou matar alguém que, um dia, lhe foi próximo. O mesmo não ocorria quando os lacaios do Reich encontravam um judeu "qualquer". Isso se deve, segundo o antropólogo, ao fato de a distância ser capaz de gerar uma falta de compaixão absoluta.

Adam Smith foi ainda mais enfático. Em sua Teoria dos Sentimentos Morais ele aponta esse egoísmo natural de nossos sentimentos com uma ilustração cortante. Se soubéssemos que amanhã iríamos perder nosso dedo mindinho, certamente atravessaríamos a noite em vigília. Mas roncaríamos serenamente "sobre a ruína de uma centena de milhão de irmãos, contanto que nunca os tenhamos visto; e a destruição dessa imensa multidão nos parecerá um objeto menos interessante do que um minúsculo acidente que nos atinja pessoalmente".

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As implicações disso não são fortuitas. Pensemos, por exemplo, nos chamados "crimes contra a humanidade". Apesar da tipificação, é mera utopia acreditar que a, por assim dizer, "humanidade" brasileira é capaz de se compungir – tal qual os muçulmanos da Bósnia – diante das atrocidades perpetradas por Slobodan Milosevic, nos anos 90. A dor do outro só é devidamente sentida por nós apenas quando imaginamos que a mesma tragédia pode vir a acontecer conosco ou com nossos conhecidos.

Trata-se, obviamente, de uma comparação macabra, mas seríamos capazes de nos sensibilizar com as vítimas da catástrofe japonesa assim como o fizemos em relação aos desventurados da região serrana do Rio de Janeiro no início do ano? Certamente não. Tanto é assim que boa parte do noticiário sobre a catástrofe tenta, de alguma forma, nos aproximar do Japão. "Algo semelhante pode acontecer no Brasil?", "A radiação das usinas pode afetar outros países?", "A economia global sofrerá algum impacto?".

Insensibilidade? Nada disso. Trata-se apenas da consagrada indisciplina de nossos sentimentos.

Elton Frederick é especialista em Política e Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. E-mail:eltonfrederick@gmail.com