Há algumas semanas foi publicado um vídeo do produtor musical Rick Beato, intitulado: “The AI Effect: A New Era in Music and Its Unintended Consequences” (tradução livre “O efeito da Inteligência Artificial: Uma Nova Era na Música e suas Involuntárias Consequências”). A partir dele é possível vislumbrar a extensão dos efeitos da Inteligência Artificial (IA) na vida humana, especialmente na música e no mercado musical. No vídeo em questão, Rick tece comentários sobre um outro vídeo que se tornou viral, publicado por um usuário do aplicativo Tik Tok. O vídeo usa a IA para reproduzir a voz dos artistas Drake e The Weeknd. Os vídeos foram derrubados das plataformas por alegação de violação de direitos autorais, mas, na percepção de Rick, a composição da IA seria “original”; ele faz uso da analogia para dizer que quando um artista imita outro não se está diante de violação de direitos autorais. Durante cerca de treze minutos ele explica suas previsões do que poderá ocorrer no setor musical em razão do uso da IA.
Mas antes de nos debruçarmos no assunto do vídeo, é necessário estabelecer as premissas dos direitos da personalidade e direito autoral que orientam o presente artigo. Os direitos autorais derivam dos direitos da personalidade de uma pessoa, os quais, por sua vez, se originam do princípio da dignidade da pessoa humana. Como direitos da personalidade, pode-se citar a liberdade física ou intelectual, o nome, a crença, a honra. Nesse sentido, os direitos da personalidade são integrados ao ser humano, fazem parte de sua persona. Um dos fundamentos recentes mais importantes do direito de autor repousa na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948: “Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor”.
A criatividade do ser humano não deve ser apenas louvada, mas protegida pelos instrumentos jurídicos já disponíveis.
Assume especial relevância o fato de que estamos diante de uma declaração universal dos direitos do homem, que ratifica a importância de proteger os interesses morais e materiais de todo ser humano sobre qualquer produção da qual seja autor. Segundo o célebre autor de direito Pontes de Miranda, o direito de autor repousa na ideia de ligar o nome à criação feita. Por esse motivo, esse tipo de direito está vinculado à identidade pessoal do indivíduo e ao seu nome. No universo jurídico, toda a proteção do direito de autor é baseada na noção de que o criador de uma determinada obra deve receber não apenas o reconhecimento, mas também os frutos do seu trabalho.
Em linhas gerais, o ramo do direito autoral integra os chamados direitos da personalidade dos seres humanos, e, como a própria expressão “autor” diz, é fruto de um ato de criação/autoria do homem. Tanto a palavra autor como criador englobam o sentido de que um ser humano esteve ativamente envolvido no processo de criação, seja de um livro, uma música, poesia, obra de arte, equipamento, ou seja, tudo aquilo que for possível criar.
Além do fato de ser um direito que emana da dignidade da pessoa humana, o direito autoral também não pode ser analisado de forma dissociada da liberdade de pensamento, uma vez que essa liberdade é a condição prévia indispensável para que uma pessoa possa, de fato, criar. Se não há liberdade de pensamento não se está diante de uma criação intelectual.
Muito embora a obra intelectual de um ser humano dotado de liberdade seja digna de louvor e proteção jurídica, o plágio é condenado tanto no aspecto moral quando legal. Há um consenso jurídico quando se define o plágio como “imitação servil ou fraudulenta de obra alheia, mesmo quando dissimulada por artifício, que, no entanto, não elide o intuito malicioso”, como define Carlos Alberto Bittar em seu livro Direito de Autor. O direito autoral é, portanto, fruto de um ato de criação de um ser humano. O plágio, por sua vez, é uma usurpação intelectual maliciosa e dissimulada. O ato de usurpar significa possuir sem direito, apoderar-se fraudulentamente do que pertence a outrem.
Definidos os conceitos de direito do autor, criador e plágio, voltemos ao vídeo de Rick Beato. Impressiona o fato de que todos esses fundamentos jurídicos, consolidados por décadas e intensos debates, sejam tão rapidamente esquecidos diante de uma nova tecnologia. É como se a IA (ou melhor, quem faz uso dela), não tivesse que prestar contas a ninguém e estivéssemos navegando em mares desconhecidos. Entretanto, se os princípios e fundamentos jurídicos são bem compreendidos, mesmo diante de eventos novos como a popularização da IA, é possível extrair do direito as soluções necessárias para a vida em sociedade.
Nesse caso, o primeiro fundamento que exige atenção é o fato de que a IA não é um ser humano, logo, não é um sujeito digno de proteção de direitos autorais. Ponto final. Uma máquina não possui consciência própria nem é dotada de liberdade de pensamento, ambos requisitos essenciais para que pudesse ter capacidade criativa. É preciso dizer o óbvio: somente seres humanos são dotados de direitos da personalidade. A IA é uma entidade despersonificada que atua com base em comandos e informações depositadas em um banco de dados – esses “comandos” são ordens dadas por outros seres humanos, e, em algumas situações, podem se desdobrar em comandos secundários necessários para alcançar um objetivo. A partir de informações preexistentes e ordens específicas, a IA pode desenvolver simulações perfeitas (ou quase) de atributos da personalidade de outros seres humanos, como por exemplo, a imagem, gestos, a voz, mas ela em si mesma não possui personalidade nem capacidade criativa.
Inúmeros filmes já descreveram a saga de máquinas em busca da autoconsciência, também chamada de singularidade. Como exemplo é possível citar o filme Blade Runner baseado no conto de Philip K. Dick, O homem Bicentenário, O Exterminador do Futuro e, mais recentemente, o filme de ação Chappie. Em todos eles a máquina atinge a singularidade, ou seja, ela se torna um indivíduo com consciência (self-awareness).
Se a IA não tem autoconsciência, não age a partir de ideias próprias e não tem capacidade criativa, o que significam essas músicas “originais” cantadas por vozes geradas artificialmente? Elas são, de fato, a forma mais perfeita de plágio musical já vista pela humanidade. A IA, operada por uma pessoa, acessa informações em seu banco de dados e a partir de comandos específicos toma para si atributos da personalidade de um ser humano famoso e talentoso, que é detentor de direitos autorais. O comando é dado para copiar a sua voz, entonação, estilo musical e padrões rítmicos. Nesse processo de usurpação da personalidade do criador foram empregados artifícios de alta tecnologia para desenvolver uma música supostamente “original”.
Por ser um processo tecnológico de plágio, o ser humano responsável pelos comandos dados à IA se oculta no anonimato, atua de forma mais distante e passiva. Talvez por esses motivos o observador leigo não consiga compreender que a música do cantor “fake IA” não é uma criação original. Essa canção só existe porque a IA foi alimentada com uma imensa quantidade de dados da voz e das composições originais do artista. Quando a IA se apossa de atributos inalienáveis da personalidade de um ser humano e de obras preexistentes, ela soa “original” mesmo sendo “fake”, porque copiou atributos de um indivíduo singular em um “novo” arranjo.
Muito embora a lei não consiga acompanhar as minúcias dos avanços tecnológicos e seus desdobramentos na sociedade, os princípios citados nesse artigo servem de base mais que suficiente para coibir a prática delituosa do plágio, agora tão somente “qualificado” pelo uso de Inteligência Artificial. Entretanto, é importante fazer aqui uma ressalva: se a IA não possui consciência, liberdade de pensamento e, por conseguinte, capacidade criativa, não é contra ela que paira a acusação de plágio. A conduta criminosa nasceu de comandos específicos dados por outro ser humano e a IA exerce apenas o papel de ferramenta, ela é o equipamento necessário para a execução do crime.
Há aqueles que irão especular se estamos diante de uma obra “autoral” de natureza derivada, todavia, no caso concreto do vídeo não foi concedida autorização prévia dos músicos detentores de direitos autorais, e, em segundo lugar, como a IA não tem autoconsciência e capacidade criativa, o ser humano responsável pela realização do comando teria que demonstrar qual foi de fato a sua “criação intelectual”. A inserção de um comando em um sistema de IA automaticamente gera direito autoral ao “criador” desse comando? O “comando” dado é uma criação intelectual digna de proteção? O direito autoral repousa sobre o “comando” ou sobre o resultado obtido a partir do comando? Essas perguntas provavelmente serão assunto de intenso debate no futuro que se avizinha.
Aquelas pessoas que executam esse tipo de comando de IA para tomar os atributos da personalidade de seus semelhantes, são uma espécie pós-moderna de vampiros. Um dos aspectos mais interessantes da mitologia desses seres é que eles não geram vida, ou seja, não são capazes de criar outro ser à sua imagem e semelhança por meio da reprodução. Vampiros vagam às sombras sob grande tormento, são seres sem espírito, escravos do seu próprio desejo. São dependentes da singularidade da vida de terceiros e assimilam essa essência para que possam desfrutar, ao menos por um momento, de um prazer passageiro. Por serem escravos de sua condição, não possuem em si mesmos a capacidade criativa. Vivem para saciar uma sede que nunca termina.
Por outro lado, a criatividade do ser humano não deve ser apenas louvada, mas protegida pelos instrumentos jurídicos já disponíveis. O direito que é ignorado pela sociedade ingressa em um processo de autodecomposição acelerado, e, não será diferente em relação ao direito autoral. A conclusão inevitável é de que a usurpação da personalidade de indivíduos por máquinas, em um processo complexo que envolve ordens de seres humanos e uso de Inteligência Artificial, deve ser coibida com a aplicação de todas as sanções legais, preservando-se a produção intelectual dos nossos semelhantes. Não se pode permitir, de forma alguma, a subversão do direito autoral, que emana do princípio da dignidade da pessoa humana, por máquinas despersonalizadas que “replicam” a essência dos indivíduos.
Cícero Antônio Favaretto é advogado.