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Artigo

Somos um pouco de cada amigo que temos

(Foto: Bob_Dmyt/Pixabay)

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De início, gostaria de contar uma pequena história. Na véspera do casamento do filho, seu velho pai o chama para uma conversa: “Amanhã você vai se casar, vai ter uma esposa, depois filhos que passarão a ser a prioridade em sua vida. Mais tarde, seus filhos farão exatamente o que você está fazendo comigo e que eu fiz com o seu avô. E o que será de você? Por isso, nunca se distancie dos amigos. Hoje você não compreenderá essa importante lição, mas, repito, dedique tempo aos amigos. E muito mais necessários eles serão à medida que você for envelhecendo. É com eles que você vai rememorar boas histórias, dar gargalhadas gostosas, falar de política e futebol, contar segredos, esquecer frustrações, angústias e ingratidões”.

Conselhos sábios de um velho pai, pois muito do que somos devemos aos amigos, e quando se perde um amigo – seja pela morte, seja por circunstâncias alheias à nossa vontade – é um pedaço de nós que se vai. Ah, como dói! E não é dor física. Por que os amigos não são eternos?

Amigos são os irmãos que nos damos, ao passo que os irmãos são os amigos que Deus nos dá – parafraseando um engenheiro carioca. Pessoas tóxicas há, sim, e muitas; entretanto, os amigos são medicinais, pois curam as nossas mazelas pelo simples fato de estarem juntos de nós. Amizade é cumplicidade, disposição para todo tipo de ajuda, reciprocidade de afetos, confiança, troca de experiências e lembranças de boas histórias em comum. E uma relação de amizade adulta será vitoriosa na medida do diálogo, das concessões mútuas e até mesmo de tolerância. Tal qual o amor, a amizade é uma roseira em seu jardim: se há a beleza e o perfume das flores, também os espinhos que por vezes nos machucam.

E qual a diferença entre “eu gosto de ti” e “eu te amo”? – questionou um discípulo ao mestre Buda, lá pelo longínquo ano de 550 a.C. Eu agora peço vênias pela licença poética que pratico na resposta dada por Buda: quando tu gostas de uma flor, tu a arrancas e a levas contigo para que contemples a sua beleza e seu aroma. Mas, se tu amas a flor, tu a cultivarás com todo o teu zelo e carinho. Cabe recordar que Buda, aos 26 anos, abandonou uma vida de riquezas e luxúrias do palácio da família em busca da elevação espiritual.

Corroboram com este pensamento os antigos gregos, para os quais a amizade é uma variação do amor – um amor temperado pela razão, que denominavam philia. Aristóteles se faz oportuno ao afirmar que “ninguém escolheria viver sem amigos, mesmo se tivesse todos os outros bens e a nobreza”. Sim, sem amigos a vida se tornaria insignificante.

Epicuro, outro filósofo helênico e que recebeu o epíteto de Apóstolo da Amizade, quando perguntado sobre o que se deve fazer para uma vida feliz, respondeu que, “para a felicidade, das mais importantes é a amizade”. Em 306 a.C., já com seus 36 anos, Epicuro arrebanhou alguns de seus leais amigos e juntos adquiriram uma espécie de chácara nas cercanias de Atenas, onde fundaram uma escola, denominada Academia Jardim, formando com os discípulos uma sociedade autossustentável: plantavam e colhiam inclusive o próprio alimento. Não havia hierarquia e dedicavam o tempo essencialmente aos estudos e à reflexão. As refeições eram o momento de compartilhamento de todos, de celebração e alegria, pois era cultura da escola que mais importante que comer é com quem comer; alimentar-se sem a companhia de amigos é viver como um lobo.

Todavia, a realidade contemporânea tem imposto importantes reveses às amizades reais, verdadeiras. Um dos bons e representativos analistas dessa realidade foi o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que chamou os atuais laços afetivos de líquidos, frágeis e individualistas. Ele refletiu em sua obra sobre as relações de amizades efêmeras do mundo das redes sociais, onde tudo é fugaz: sentia-se estupefato com as pessoas que têm 500 ou mil “amigos”, pois ele, que passou dos 90 anos, contaria nos dedos aqueles que chamaria de amigos.

Para Bauman, este é um grande paradoxo, pois é um solitário em meio a uma multidão de solitários, um ecossistema onde “tudo é mais fácil na vida virtual, mas perdemos a arte das relações sociais e da amizade. Esquecemos o amor, a amizade, os sentimentos, o trabalho bem feito. O que se consome e o que se compra são apenas sedativos morais que tranquilizam seus escrúpulos éticos”. Prevalece o fast-food (não só o da alimentação), longe do apregoado por Epicuro. E o que será dessa geração quando chegar aos 50, 60, 70 anos, sem que tenham sido cultivados os amigos de verdade?

Jacir J. Venturi é professor, diretor de escola, autor de três livros e membro do Conselho Estadual de Educação do Paraná.

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