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Meu computador que tantas peças me prega, ora se redime pelas músicas que me oferece devidamente selecionadas durante uma nostalgia. Música desde o tempo das vitrolas, com discos de 78 rotações, troca de agulhas e as mágoas do ébrio Vicente Celestino, que "rasgou o seu retrato ajoelhado aos pés de outra mulher."

Meu elenco soma 600 opções entre boleros, tangos, sambas, choros, valsas, serestas, "noite alta céu risonho a quietude é quase um sonho" e fados na voz de Amália Rodrigues: "É uma casa portuguesa com certeza", é com certeza um casa portuguesa". Todos os gêneros e autores numa babel de letras e ritmos, que põem meus netos distantes a indagarem se o velho não está mais para lá do que pra cá. Um raciocínio que se respalda na ausência da música popular brasileira, ora substituída pelos acordes do Tio Sam, os únicos que se ouvem em nossos eventos sociais, raramente intercalados por um solitário bolero de Agustín Lara.

Música nossa só nas comemorações cívicas com os dobrados Batista de Mello, Cisne Branco, e a Canção do Exército: "A paz queremos com fervor, a guerra só nos causa dor". Uma exortação aos filhos da pátria para que a amem ou a deixem.

Os quatro grandes da época de ouro: Francisco Alves, Silvio Caldas, Carlos Galhardo e Orlando Silva comparecem com suas melhores criações, com exceção "Abigail", o único pecado do cantor das multidões, a pior criação de sua carreira. Silvio Caldas, de interpretações elaboradas, soluça em "Suburbana", "Serenata", "Chão de estrelas", "Voz do violão"... Francisco Alves, que jamais abdicou do título de "rei da voz", legenda perseverada até seu falecimento, quando aos domingos, na Rádio Nacional, ao encontro dos ponteiros nas badaladas do meio-dia, começava o programa Luiz Vassalos. Carlos Galhardo, "o rei da valsa", concorre com um romântico repertório em que brilha ao som de "Fascinação", "O destino desfolhou", "Em você" e "Sonhos azuis".

Músicas de carnaval? Tem sim senhor, com João de Barro, o Braguinha, falecido aos 99 anos, e Lamartine Babo, que viveu apenas 47. O maior sucesso do primeiro é "Pastorinhas," ganhadora do carnaval de 38. Do segundo, ressalta-se "O teu cabelo não nega". Do primeiro não gosto de "Chiquita Bacana que veio da Martinica com uma casca de banana nanica" e do segundo dispenso a marcha do grande galo que, com seu corococó, tinha saudades da galinha carijó.

Gosto de músicas alegres, de risos e graças, como o "Drama de Angélica" cujo pai, "homem carnívoro, chefe do tráfego, ficou perplexo; e por ser estrábico usava óculos, com um vidro côncavo e outro convexo". Nesse rol incluo o pistão de gafieira de Billy Blanco e de "Ponta a ponta", as de Adoniran Barbosa, nosso autor mais referido lá fora, com várias produções traduzidas para outros idiomas. Também ouvi, num restaurante em Zurique, "Aquarela do Brasil", do Ary Barroso, e "Tico-tico no Fubá", do Zequinha de Abreu, autor de nossas valsas de outrora: "Branca", "Amando sobre o mar", "Tardes em Lindóia", "Só pelo amor vale a vida", títulos que os macróbios adoram e com os quais a mocidade não se conforma. Não prescindo de Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes com "A banda", "Sei que vou te amar" e "Garota de Ipanema". Tenho de Nat King Cole uma dezena de versões mexicanas que ganham efeitos especiais no seu sotaque próprio. Boleros, que são do meu tempo, entram nas vozes de Pedro Vargas e Elvira Rios, sublime nos acordes de "Pecadora", seu maior êxito. Das americanas destaco "New York, New York", "Sing in the rain", "Stranger in the night", "Love letters", "Stardust", "Begin the begin".

Há também os tangos uruguaios como "La Cumparsita", de Gerardo Mattos Rodrigues, ou argentinos de Gardel e Le Pêra: "Mano a mano", "Por una cabeza", "A media luz", "Cambalache", "Adios muchachos", seqüência de tragédias e amores mal-sucedidos.

Batidas nacionais: o choro e o samba. O primeiro com mais de 130 anos é executado por conjuntos regionais, integrados por violão de sete cordas, violão, bandolim, flauta, cavaquinho e pandeiro. Surgiu em l870 no Rio, mostrando uma forma abrasileirada de cadências européias como o xote, a valsa e a polca, além do africano lundu. Chorões de maiores sucessos são Chiquinha Gonzaga, Zequinha de Abreu, Ernesto Nazareth, Pixinginha, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Altamiro Carrilho. Dentre os mais famosos, "Odeon, brejeiro", "Pedacinhos do céu", "Noites cariocas", "Linda flor que morreu", "É do que há", "Porque choras saxofone".

Quanto ao samba, apareceu na era do Brasil Colônia, com a chegada dos escravos. O primeiro – "Pelo telefone," de Donga – foi cantado por Bahiano em l917. Um ano depois, o ritmo espalhou-se pelas ruas e carnavais do Rio com Cartola, Noel, Lamartine, Carmem Miranda, Ary Barroso e a partir de 1970, uma nova geração animada por Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Elza Soares, Clementina de Jesus, Ataulfo Alves, Nelson Cavaquinho, Araci de Almeida, Demônios da Garoa, Elis Regina e muitos outros que os leitores podem acrescentar. Os sambas, além do Sul, com Lupicínio Rodrigues, são da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Os da Bahia sofrem influência do lundu e do maxixe: têm letras simples, balanço rápido e repetitivo. Os do Rio são ligados à vida dos morros, falando da cidade grande, irônicos e maliciosos. Os de São Paulo sugerem uma mistura de raças, com sotaque italiano, letras bem elaboradas e apelos hilários. Vale a pena o passeio pelos arraiais da música, lembrando de que "quem não gosta de samba bom sujeito não é; ou é ruim da cabeça ou doente do pé."

Lauro Grein Filho é presidente da Cruz Vermelha e do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.

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