O Brasil acaba de assistir a mais um espetáculo chocante perpetrado por um membro da suprema corte. O ministro Alexandre de Moraes, diante da desastrosa declaração de Rodrigo Janot, no sentido de que teria tencionado matar o ministro Gilmar Mendes e depois suicidar-se, determinou o cumprimento de mandados de busca e apreensão na residência e no escritório daquele que já ocupou o cargo de procurador-geral da República, além de ter proibido que Janot se aproxime de qualquer ministro daquela corte; também foi vedado o seu ingresso nas dependências e anexos daquele tribunal.
Como base para tal decisão, Moraes argumentou que Janot teria incorrido nas sanções do artigo 286 do Código Penal e dos artigos 18, 22, 23, 26 e 27 da Lei 7.170/83, a Lei de Segurança Nacional.
Pois bem: quanto ao primeiro delito, é sabido e consabido que uma declaração acerca de um intento nada tem a ver com o intuito de estimular pessoas a reproduzirem o comportamento narrado. Afinal, não se ouviu o ex-procurador-geral dizer ou mesmo sinalizar que tal declaração estava sendo feita com o propósito de que alguém executasse o que ele pretendeu fazer, mas não fez. Do contrário, qualquer pessoa que confessasse publicamente a prática de um crime, por exemplo, incorreria de imediato nas sanções do delito previsto no artigo referido ou naquelas previstas no artigo 287 do Código Penal (caso a referência seja ao fato concreto – portanto, já praticado).
As declarações de Rodrigo Janot são gravíssimas e merecem providências. Agora, daí a querer transformá-las em algo criminoso é outra coisa
No que se refere aos dispositivos incriminadores previstos na Lei da Segurança Nacional, o aludido ministro, no afã de encontrar algum tipo penal que incidisse sobre a conduta de Janot, mencionou até mesmo os artigos 26 e 27 daquela lei, os quais exigem uma condição especial da vítima, qual seja, a de presidente da República, do STF (ao tempo da ação delituosa) ou de uma das casas do Congresso Nacional, sendo que Gilmar Mendes presidiu a corte suprema muito antes de Rodrigo Janot tomar assento na PGR. Ou seja, quando houve a situação descrita pelo ex-procurador-geral, Mendes não era mais presidente do Supremo.
O artigo 18 da Lei de Segurança Nacional descreve a conduta daquele que “tentar impedir, mediante violência ou grave ameaça”, o exercício dos poderes da União ou dos estados. Os artigos 22 e 23 falam da incitação ou propaganda “de qualquer dos crimes previstos nesta lei”. Mas Janot, como bem mostram suas declarações, não fez propaganda nem incitou crimes previstos na Lei de Segurança Nacional. Apenas, e tão somente, declarou que pensou em matar um ministro do STF.
Janot “tentou impedir” o exercício dos poderes? É evidente que não! Primeiro, porque a motivação do agente, no caso de incidência da Lei de Segurança Nacional, tem de ser de cunho político, sendo que o próprio Janot disse ter cogitado a hipótese de matar Gilmar Mendes porque ele havia inventado uma história sobre a filha do então procurador-geral. Ou seja, a motivação teria cunho eminentemente pessoal, o que afastaria a incidência daquela lei. Segundo, porque Janot não cometeu crime algum, e por uma razão muito simples: não houve início de ato executório! O artigo 14, II, do atual Código Penal assim preconiza há quase 80 anos. Portanto, ele não “tentou” aquilo que, pela lei, é considerado como “tentativa” – estudantes ginasiais dominam esse raciocínio com muita facilidade.
É verdade que as declarações de Rodrigo Janot são gravíssimas e merecem providências. Agora, daí a querer transformá-las em algo criminoso é outra coisa. Mas não é de hoje que algumas entidades supremas excedem o poder que lhes foi conferido pela Carta Magna, seja amoldando condutas atípicas a crimes, seja instaurando inquéritos medievais (sigilosos, instaurados de ofício por magistrados, sem crime definido a ser apurado etc.), recepcionando (artigo 43 do Regimento Interno do STF) aquilo que claramente entra em rota de colisão com o modelo constitucional vigente.
Assim, agindo como coveiros que não se cansam de enterrar princípios constitucionais e regras básicas de direito penal e processual penal, avançam sobre aqueles que são identificados como desafetos, atropelando mandamentos legais que por eles mesmos são utilizados como razão de decidir, desde que as vítimas, obviamente, não sejam seus pares de toga. Do contrário, utilizam-se do “Direito Penal da Vítima”, deixando de analisar, com a devida cautela, o fato em si para prestigiar o cargo ocupado por aquele que se autodenomina ofendido.
Na sequência e em clara afronta à inteligência alheia, tocam trombetas e jogam confetes em torno de si mesmos, propagandeando a “defesa da Constituição e da democracia”, num jogo no qual o contorcionismo semântico tritura e elimina qualquer resquício de observância às leis vigentes, criando, para si próprios, um “direito prêt-à-porter”. É a arte de transformar aquilo que é flagrantemente torpe em algo nobre.
Acostumados a cavalgar sobre a certeza de que nada pode atingi-los, alguns desses ministros ainda podem contar com um sem-número de bajuladores/operadores do direito, que veem a “boa relação” com membros da corte suprema como algo a ser colocado à frente dos princípios que falsamente defendem. Afinal, para esses aduladores de plantão, para quem qualquer suposta inobservância à Lei Maior é vista como um “estupro à Constituição", o que importa, de verdade, é saber por quem a Carta Magna foi estuprada. O "estupro", em si, é algo de somenos importância.
Diante desse contexto de demonstração de poder e ausência de limites, adicionados ao servilismo abjeto dos “bajuladores garantistas”, os quais apenas usam suas pedras para atirá-las contra a Lava Jato, somado aos aplausos que partem de mãos calejadas de tanto escrever artigos em defesa da “Constituição Cidadã”, servidores públicos que deveriam dar o exemplo aos que estão nas camadas de baixo deixam muito claro que aquilo que se prega no Olimpo deve ser observado apenas por quem está sujeito a responder pelos atos que porventura vier a praticar. Aos que estão imunes cabe, unicamente, algo que muitos de nós não temos mais: liberdade!
Ronaldo Lara Resende é promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul.