Na Esparta antiga, ao tempo de sua glória como a cidade militarmente mais poderosa da Grécia, entre os séculos VII e III antes de Cristo, criadora, anfitriã e vencedora de quase todas as Olimpíadas clássicas, rival da majestosa Atenas, havia uma instituição jurispolítica (com licença do neologismo) chamada Éforo (ou Eforato), que significa “supervisor”, a qual merece toda nossa atenção. Supervisar quer dizer aqui inspecionar, vigiar, sancionar, impugnar, desfazer atos de outras instituições e punir indivíduos maus praticantes de seus deveres, inclusive os próprios reis.
Essa instituição era composta por um comitê de cinco homens maduros eleitos entre todos os legítimos espartanos, ricos ou pobres, através do voto aberto, vocalizado ao vivo, por cada membro da Assembleia popular. Seu mandato era de um ano, não renovável. Frequentemente eram eleitos homens que já haviam feito algo pela defesa e honra de Esparta e homens que se aproveitavam de sua popularidade adquirida nos jogos olímpicos ou que podiam ser eleitos por sutil manipulação de algum dos reis. A corrupção era rara, mas não de todo ausente.
As prerrogativas e tarefas de governança do Eforato se estendiam por todas as instituições civis, governamentais e também religiosas. Participavam, junto com a Gerousia, traduzível por “senado” (formado por 28 membros e os dois reis), nos tribunais de justiça para julgar crimes de morte, traição ao Estado e outras ofensas, e sancionavam punições que incluíam morte, exílio e perda de direitos. Podiam convocar e dirigir a Ecclesia, ou Assembleia, onde todos os cidadãos tinham direito a voto, para deliberar sobre assuntos públicos do dia, criar leis e regulamentos.
Adquiriram a prerrogativa de servir como embaixadores e representar o Estado perante autoridades estrangeiras, em decretar guerra, e em acompanhar o rei escolhido para comandar o exército. Disciplinavam os jovens nos seus exercícios marciais. O Éforo se reunia quando necessário; porém, no dia do equinócio outonal (final de setembro, no nosso calendário), a reunião tinha como finalidade declarar guerra aos hilotas, i.e., a população majoritária de não-espartanos desarmados, em regime de escravidão ao Estado. Nesse dia, todo e qualquer cidadão armado tinha o legítimo direito de perseguir, atacar e matar qualquer hilota que encontrasse – este era o modo de desbastar essa população (sete vezes superior em números aos cidadãos espartanos) e alertá-la para se manter em subjugação e não se rebelar. Os éforos tinham o privilégio de não se ajoelhar perante os reis e de fazer suas refeições comunais, a syssitia, separados do resto da população. Por fim, prestavam juramento somente aos deuses, e não aos reis. Como se pode estimar, passariam vinte e tantos séculos para surgir um Montesquieu para propor que um governo seria mais justo e equilibrado ao separar as instituições da justiça, da legislação e da execução.
Eis que o STF tem se dedicado com denodado vigor a praticar, intimorato, atos extrajudiciais ao seu bel e singular entendimento.
O Eforato foi uma instituição própria de um Estado-nação que, ao contrário de Atenas, mantinha e misturava instituições dos tempos gentílicos com instituições e práticas mais condizentes com a democracia. Platão tinha horror ao Eforato por sua tirania, Aristóteles, menos. Seu comando substituía o comando dos reis, das assembleias e dos tribunais e se imiscuía no comportamento e hábitos da população. E o fazia com a autoridade sancionada pelos deuses e pela constituição de Esparta, cuja única versão escrita ficava no Oráculo de Delfos para consulta.
O que tem isso a ver com o Brasil? Afinal, de contas, temos uma constituição moderna, baseada em princípios democráticos, com direitos civis e humanos extensivos a todos os cidadãos, com divisão de poderes, onde cada qual tem suas prerrogativas e atributos. Sem desesperança, podemos dizer, nossa democracia vem funcionando, ainda que aos trancos e barrancos, sem diminuir seu ímpeto original, criado há seis vintenas e meia de anos.
Ademais, temos o Supremo Tribunal Federal, que defende os direitos dos cidadãos e é o guardião da Constituição Federal, acima de quem não cabe mais recurso algum, a não ser a misericórdia divina. Contudo, algo vem acontecendo na esfera jurisdicional do país na última vintena, que tem causado perplexidade e desnorteamento entre os cidadãos. Parece que baixou certo espírito “eforal” no nosso órgão jurídico superior.
Eis que o STF tem se dedicado com denodado vigor a praticar, intimorato, atos extrajudiciais ao seu bel e singular entendimento. Não se acanha em intervir nas casas legislativas e até no Executivo; emite ordens para os garimpeiros se retirarem de terras indígenas; os fazendeiros contemporizarem com invasores de suas terras; os madeireiros parem de derrubar as árvores; dá prazo mínimo para as autoridades que não lhe apetecem cumprirem determinações exorbitantes; coage jornalistas, ativistas digitais e políticos a acatar as normas de instituições estrangeiras em nome de uma racionalidade esdrúxula; pune severamente aquele que critica, com ou sem razão, alguma dessas determinações.
No começo, essas atividades pareciam inusitadas, um pouco bizarras, e aos poucos a população foi se acostumando sem entender direito o quê esses ministros faziam e para onde pretendiam levar a nação. Talvez fosse uma coisa boa os brasileiros terem uma corte de varões e varoas de altíssimo escol a nos guiar pelo caminho reto da verdade e da virtude.
Eles haviam apoiado, por exemplo, o movimento e as ações judiciais contra a corrupção de políticos brasileiros encabeçados pela Operação Lava-Jato. Muito bom, pensaram muitos. Até acataram as condenações das três instâncias jurídicas que antecedem ao STF e favoreceram o aprisionamento de quase todos os implicados naquela operação judicial. O Brasil foi festejado mundo afora como se estivesse entrando num caminho da virtude cívica e moral. Mas, eis que de repente, algo mudou e o que parecia bom ficou amargo e perigoso.
A súbita mudança no caráter do STF afluiu no momento em que surgiu no horizonte político o espectro de Jair Bolsonaro. Antes um reles deputado do baixo clero, elogiado apenas por ser honesto, Bolsonaro, por seu caráter extravagante, teve uma ascensão rapidíssima a partir de 2012. Seu discurso e sua catadura pareciam ameaçar o confortável status quo da sociedade bem estabelecida. Na medida em que foi subindo até alcançar o posto de governante maior do país, tornando-se popular e servindo de êmulo à ascensão política e cultural de um grande segmento da população brasileira, Bolsonaro precisou ser contido, o que significa na jurispolítica brasileira ser destituído de seu pedestal de ex-presidente e ter seus direitos políticos cassados. Para tanto, muitos processos foram sendo abertos tanto pela Procuradoria-Geral quanto pela AGU, pelo TSE e pelo próprio STF, e o primeiro deles a ser acionado se deveu a uma reunião do então presidente Bolsonaro com alguns embaixadores a propósito das desconfianças a respeito da lisura do corrente processo eleitoral de 2022 e em especial da confiabilidadedas urnas eletrônicas. Bolsonaro foi condenado à perda de seus direitos políticos por oito anos.
Desde a campanha pelas eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro vem sendo admoestado, qual subordinado perante o superior, e ameaçado, qual cidadão de segunda classe pela autoridade constituída, qual hilota contemporâneo, pela jurispolítica brasileira, com um vigor nunca dantes visto na história desse país. Os cidadãos que o veem como um perigo à democracia brasileira se exultam com as extemporâneas normas eleitorais, com as intervenções administrativas e com as decisões jurídicas emitidas contra ele pelos éforos do STF.
Mas, é só com Bolsonaro que o STF tem sido arbitrário ao extremo? É só contra ele e seus correligionários que a lei pode ser relevada e descumprida? Bem, o STF é fruto de seu tempo, o tempo histórico do Brasil, cuja democracia entrou em convulsão. Mas é também fruto de algumas transformações que o sistema jurídico internacional vem experimentando há pelo menos trinta anos. É o tempo da revisão do direito em si em prol de uma visão que tem transformado o direito positivo num estranho direito, digamos, consuetudinário por revelia, onde a hermenêutica jurídica vale mais, precede e está além da letra do direito positivo. Os mais ilustres sabem melhor o que é legal, direito, moral, ético e bom para a nação.
Pode-se traçar a origem dessa nova tendência jurídica, que se afirma progressista e interpretativista, a partir de algumas correntes de estudos com origem nos Estados Unidos e na Europa, especialmente em países como Itália, Alemanha e Espanha. Um deles se denomina “Estudos Críticos do Direito” (em inglês, Critical Legal Studies), outro “Neoconstitucionalismo”. Essas correntes ou escolas jurisconsultas nasceram e florescem desde os anos 1980 com o objetivo de interpretar as leis e normas do Direito, não somente pela letra constitucional, mas a partir de considerações sociológicas, antropológicas e políticas sobre os fundamentos da entranhada desigualdade social que maltrata as classes menos favorecidas das sociedades modernas, bem como sobre as novas demandas criadas pela sociedade democrática e consumista da contemporaneidade.
Sua base filosófica advém das proposições de filósofos como Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jacques Derrida, uma tríade de franceses que, frustrados com o marxismo como doutrina, com o débâcle dos países socialistas,com o enfeitiçamento pós-moderno pelo consumismo, pela ilusão capitalista, poderíamos dizer, passou a analisar o mundo como produto do poder opressor que, não somente oprime as massas, no sentido econômico e político, como anuvia as mentes dos cidadãos, fazendo-os pensar que não há outra maneira de ser senão a estabelecida. E o estabelecido é um mar revolto de conflitos e infelicidades. As filosofias dessa tríade esparramaram-se por todos os rincões do mundo ocidental, esbarrando apenas nos países islâmicos e no Reino do Meio.
O resultado é que, na área antropológica, surgiram os temas do racismo estrutural, do identitarismo (antes, o politicamente correto) e do gênero, com suas multifaces irredutíveis; na área sociológica, surgiu a teoria do neocolonialismo, ou a “colonialidade” que precisa ser “decolonizada” (sic), pelo qual todas ações e comportamentos dos cidadãos de um país como o Brasil derivam do pecado original de sua formação, a qual não dá sinal de ser superada e precisa ser combatida, castigada e transformada.
No campo político, o sentimento de opressão se estendeu não só para os povos originais destruídos e dispersados e as classes tradicionais de trabalhadores, mas também para todos os segmentos raciais, étnicos, de classe e de gênero que, necessariamente, sofrem a maldição do poder opressor. No campo jurídico, que se transformou em jurispolítico, a recepção das ideias desses filósofos se deu, via as correntes mencionadas, da maneira que se segue.
“O Direito Positivo está morto, viva o Direito Hermenêutico Igualitarista!” é o primeiro brado retumbante do novo direito. Cabe aos juízes e aos causídicos nem tanto remendar a lei criada pelo poder opressor, pela tradição ou pela intervenção, mas criar um novo direito. Como, em princípio, juristas e advogados não são eleitos e incumbidos de fazer leis que se contraponham à opressão generalizada, estes devem ouvir as demandas dos vociferantes reclamantes e ajeitar as leis ao seu contento. Introduziu-se a ideia de que uma espécie de princípio jurídico antecede o fato jurídico. Ainda que não eleitos pelo povo, e sim nomeados pelo presidente da República e referendados pelo Senado Federal, os nossos ministros se acham imbuídos de um fervor ativista próprio de quem se considera representante do povo. Com efeito, não pensam assim casuisticamente ou por devaneio de grandeza, mas baseados no pensamento derivado da corrente neoconstitucionalista. Nas palavras de Ricardo Marcondes Marins, parafraseando o famoso neoconstitucionalista alemão, Robert Alexy, “os legisladores representam o povo na política, no debate próprio das questões do pluralismo, os magistrados representam o povo na análise jurídica, nos debates sobre a correta interpretação”. Desse modo, se autorrepresentando o povo, como não lhes fazer o bem por sábia decisão?
No Brasil, há sutilezas e nuances no processo de criar um novo direito, quanto mais por causa de nossa tradição estamental de autoritarismos, privilégios e autoenaltecimentos. A nossa cultura protetora do sistema jurídico encoberta as extravagâncias institucionais sem que haja qualquer sinal de contrariedade por parte das casas legislativas ou do Executivo. A mídia estabelecida faz coro e atiça. Eis que, por isso, o Poder Judiciário em todo seu aparato de ostentação e gastos pareça ao público mais desabonadora do que os outros poderes, e inevitavelmente pespegada de acusações de corrupção, se não material, moral e espiritual.
Ademais, não se sabe bem como se deu, mas até as ordens de classe maiores do direito nacional, antes tão apegadas às formalidades de clamar e bradar pelos direitos políticos, civis e humanos dos cidadãos, mantêm-se inalteradas diante do “eforismo” nacional. Parece a todos que a guerra está perdida. Os novos bárbaros venceram. Aqueles entre políticos, juristas e cidadãos comuns que pretenderem protestar, que seja ao seu próprio risco e custo. E há os que protestam. Em breve, políticos e juristas contrários à jurispolítica nacional levarão pleitos de acusações e reclamações aos tribunais internacionais, porém, em vão. Quebrarão suas caras: os éforos internacionais já sabem o que fazer, pois já estão em altíssimo nível de compromisso com a nova realidade.
Baixemos a bola da crítica um tanto. O STF jamais seria capaz de condenar cidadãos brasileiros à morte, pois não há mais essa forma de punição no nosso direito. Dezessete anos de encarceramento talvez seja o limite. Destitui-los do direito de fala e comunicação de suas ideias, pode ser; exilá-los, talvez; ostracizá-los, quem sabe; exigir a extradição de brasileiros de outros países, pode-se tentar; aterrorizá-los com ameaças de destituição de direitos de cidadania, certamente. Quem quer que escreva algo diferente do esperado nas redes sociais está suscetível de sofrer algum tipo de sanção.
A prisão em massa de mais de 2.000 cidadãos – que, entre outros mais, se arregimentaram por dois meses em protesto pelo que achavam lhes havia sido surrupiado, qual seja, a reeleição de Bolsonaro, e, depois de tantas dúvidas e omissões, se dispuseram a invadir os edifícios públicos do STF, do Senado e da Câmara e até do Palácio do Planalto, e nesses prédios alguns deles praticaram um quebra-quebra geral, com ou sem a ajuda de agentes do Estado, certamente foi um dos atos mais aviltantes que o STF exerceu em seus anos de jurisprudência e retórica especiosa.
Nos longos anos desde o fim do regime militar, a invasão de prédios públicos com intenção de protestar foi considerado fato relativamente comum, próprio de uma democracia, sem nunca o STF ter interferido contra. Nem a punição de baderneiros que fizeram uso de bombas e quebra-quebras nas manifestações das chamadas “Jornadas de Junho” chegou a ser sancionada, em segunda instância, após mais de dez anos de julgamento. Desta vez, no entanto, em grupos de quinze pessoas arroladas sem distinção de quem cometeu o quê ou qual ato criminoso, o STF os transformou em réus e impingiu-lhes sentenças que nem a assassinos de crianças se aplicam neste país.
Os processos que cada uma dessas 2.000 pessoas vem arrostando parecem a muitos advogados, juristas e cidadãos comuns com os processos inquisitoriais de antanho. Os indícios em que se baseiam as acusações se manifestam quase como denúncias de vizinhos, de tão pouca evidência e confiabilidade. Muitos nem sabem de que são acusados e se essas acusações correspondem ao que fizeram. Mas elas foram feitas para o gaudio e honra de um subsistema de Eforato tupiniquim, a Procuradoria- Geral da República. Quase todos os detidos, presos, enquadrados sob tornozeleiras eletrônicas, foram genericamente acusados de “crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado”.
Ao que se sabe, nenhum dos manifestantes e mesmo daqueles que foram detidos nas dependências públicas mencionadas, ou simplesmente filmando fora dessas dependências, ou sendo arrebanhados da praça pública era portador de arma ou sabia e seguia um plano minimamente elaborado de golpe de Estado.
Por sua vez, as prisões cautelares e preventivas e a restrição aos advogados de acompanhar seus clientes e fazer a defesa publicamente indignam o mais simples advogado de porta de cadeia do país. A imperiosidade de um ministro em negligenciar a concessão de licença para o prisioneiro Cleriston Pereira da Cunha, dono de uma pequena loja no Distrito Federal, que tinha ido à manifestação sem qualquer predisposição agressiva, portador de cardiopatia crônica, sair da prisão e se consultar e ser medicado, resultou fatalmente em sua morte no próprio cárcere, no dia 20 de novembro de 2023.
Até onde irá o STF em sua sana desmedida de vestir a toga do moderno éforo para condenar cidadãos pelo direito de exprimir suas ideias e compromissos com respeito a políticos como Bolsonaro? Provavelmente, muitos anos à frente. Nesses dias de março de 2024, os mais desabridos e ativos estão criando uma comissão de jovens candidatos a éforos encarregados de zelar pelas palavras que podem ser proferidas por políticos em suas campanhas e por críticos, jornalistas, políticos e parlapatões nas mídias sociais. Apelidaram essa comissão de “Comissão da Verdade”!
Ó tempora! Ó mores! Do lado bom, não há mais segredos de Estado, nem informação que não possa ser veiculada e conhecida por todos. A resistência ao devaneio tirânico está emergindo do próprio seio do povo brasileiro, ao menos por emulação ao que está acontecendo em países de mais tradição democrática e de mais respeito aos direitos civis dos cidadãos. Mas a redenção não será para já. O movimento jurispolítico que deu ensejo ao “eforismo” tupiniquim respira, bufa e cospe fogo. Novos ardis serão criados, e a nossa resplendorosa sociedade civil e suas instituições permanecerão enfastiadas e desdenhosas de reconhecer a desconstituição de nossas fibras morais.
Mércio P. Gomes é antropólogo, professor da UFRJ, autor de “O Brasil Inevitável” (2019).