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Palácio do Supremo Tribunal Federal na Praça dos Três poderes em Brasília.
Palácio do Supremo Tribunal Federal na Praça dos Três poderes em Brasília.| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Passada a flagrância da lamentável invasão da Praça dos Três Poderes em Brasília, parece oportuno revisitar acontecimentos e situações anteriores, sem qualquer intenção de justificar as insanidades perpetradas que podem ter colaborado para a crise de descrença e desconfiança no Supremo Tribunal Federal.

Primeiro, o antigo e contínuo desrespeito à imprescindível colegialidade do STF (onde a diversidade nacional está melhor representada). Pode-se ver isso de forma consistente em inúmeras decisões monocráticas impactantes, não levadas à imediata apreciação dos demais componentes do colegiado. Igualmente, os pedidos de vistas obstativos de julgamentos importantes geram insegurança, descrença, desconfiança e espaço para jogos de poder. Mesmo criticada há décadas pela sociedade e juristas, tais problemas só foram finalmente reconhecidos pelo Supremo em 14 de dezembro passado, com promessa de acertamento via mudança no regimento interno da Corte. Se efetivamente posto em prática, será um aprimoramento elogiável, mas muito tardio.

O STF precisa de muitos aprimoramentos, com urgência, para poder cumprir sua fundamental função: pacificar com justiça e em tempo compatível com a modernidade.

Segundo, a excessiva competência processual, fazendo a Corte Suprema funcionar como tribunal constitucional, tribunal de recursos em quarta instância e tribunal de processamento para os inúmeros casos de foro privilegiado. Somado à enorme amplitude normativa da Constituição Federal, isso faz com que sejam encaminhados ao Supremo por volta de 75 mil processos por ano, volume incompatível com o número de onze ministros e até risível quando comparado com as demais cortes supremas do planeta.

Esse número invencível de processos dificulta julgamento pelo colegiado, gera demoras danosas na formação de jurisprudência segura, espraiando disfunção para todo o sistema judicial, atrapalhando a economia e prejudicando o país. Processos de importância nacional esperando anos e até décadas para serem julgados desprestigia a Corte. Para enfrentar o monstruoso estoque de processos, foram criadas duas turmas de julgamentos, com cinco ministros cada uma, desatendendo a colegialidade plena e até gerando divergência de jurisprudência, mesmo assim sem sucesso.

O Supremo precisa urgentemente transferir competências processuais, concentrar seu esforço e precioso tempo nas importantes questões nacionais, apresentando resultados em menor tempo, como exige a modernidade.

As constantes alterações de entendimento da Corte Suprema acabam por gerar insegurança jurídica, desconfiança e descrença.

Terceiro, o caso da prisão para cumprimento de pena somente após trânsito em julgado em até quatro instâncias de julgamento. O nosso Direito tem uma antiga história de cumprimento da pena após condenação da segunda instância, com possibilidade de Tribunal Superior excepcionalmente suspender justificadamente a execução da pena.

Entretanto, em 2009, o Supremo, por maioria simples (6 a 5), mudou a regra, reconhecendo o direito de recorrer em liberdade até julgamento em quarta instância. Apenas sete anos depois, em 2016, voltou a permitir cumprimento de pena após julgamento em segunda instância. Em 2019, deu uma nova guinada, por maioria simples (6 a 5), voltando a reconhecer o direito de recorrer em liberdade até a quarta instância. As constantes alterações de entendimento da Corte Suprema, especialmente neste tema sensível, acabam por gerar insegurança jurídica, desconfiança e descrença.

A regra de até quatro instâncias para cumprimento da pena, além de demoras injustas, aumentando a probabilidade de prescrição e impunidade, destoa dos sistemas penais dos países democráticos, que concluem seus processos penais em duas, ou, no máximo, três instâncias.

Pesquisas de opinião têm registrado elevada falta de confiança da população no STF.

Com as recentes mudanças na composição da Corte, é bem possível que o tema possa sofrer mudança novamente, com deletério impacto midiático e social. Todo este quadro afeta a imagem da Suprema Corte em relação ao esperado pela sociedade, especialmente quanto à impunidade dos mais ricos e poderosos.

Por fim, quarto, o encaminhamento dado pelo Supremo ao caso da Lava Jato. O próprio Supremo, em 2016, no âmbito da Lava Jato, cassou a nomeação do atual presidente da República para ministro-chefe da Casa Civil (o que lhe daria foro privilegiado no Supremo), entendendo ter ocorrido ilícito com aparência de legalidade na nomeação, mantendo o processo na primeira instância de Curitiba. Em abril de 2018, o Supremo, por 6 a 5, concordou com a prisão do atual presidente da República para cumprimento de pena, por estar condenado em duas instâncias, imediatamente encaminhada pelo TRF-4 e mantida até 08 de novembro de 2019.

O Brasil terá dificuldade de chegar ao clube dos países desenvolvidos se não aprimorar o Supremo.

Em março de 2021, quando já havia condenação em três instâncias (até o STJ), a Segunda Turma do STF, por maioria simples (3 a 2), lograda com a mudança de voto de um dos componentes da Turma, no apertado espaço processual de um Habeas corpus, decidiu pela suspeição do juiz que julgou o atual presidente da República na primeira instância, anulando todo o processo e, por consequência, possibilitando a prescrição do crime e arquivamento do processo sem julgamento do mérito da acusação.

Ainda no âmbito da Lava Jato, depois de anos e muitos recursos, o Supremo declarou incompetência territorial da Vara Federal de Curitiba em alguns processos e incompetência da Justiça Federal (e competência da Justiça Eleitoral, também por frágil 6 a 5) em outros, encaminhando os processos para outras jurisdições, alguns para começar do zero, ampliando desastrosamente a possibilidade de prescrição e impunidade. O quadro todo gerou muitas dúvidas e incompreensões para boa parte da sociedade.

Relatório da Transparência Internacional de 2022 apontou que o Brasil regrediu na implementação da Convenção Antissuborno da OCDE, citando como fator que compõe o quadro de retrocesso a “Transferência da competência de investigação de casos de corrupção e lavagem de dinheiro quando associados a crimes eleitorais (como caixa dois) para a Justiça Eleitoral, com menos estrutura e especialização para processar crimes complexos”. O quadro todo parece indicar que parte da elite jurídica nacional preferiu arquivar a corrupção dos poderosos.

Pesquisas de opinião têm registrado elevada falta de confiança da população no STF. Em 2016, pesquisa da FGV revelou que a confiança da população no Supremo era de apenas 24%. Em setembro de 2021 tinha 38% de desconfiança (33% dois anos antes) e outros 44% que confiavam pouco na Suprema Corte, segundo Datafolha. Em janeiro de 2023, 44,9% disseram confiar no STF e 44,8% afirmaram não confiar, segundo Atlasintel.

O Supremo Tribunal Federal tem feito um trabalho grandioso na defesa da democracia, especialmente nos últimos anos, com elogiadas decisões na proteção de minorias, direitos humanos e em quase todas as demais áreas do direito. As performances pontuais, entretanto, não apagam o quadro geral de déficit de imagem e legitimação social, base da descrença e desconfiança popular. O STF precisa de muitos aprimoramentos, com urgência, para poder cumprir sua fundamental função: pacificar com justiça e em tempo compatível com a modernidade. O Brasil terá dificuldade de chegar ao clube dos países desenvolvidos se não aprimorar o Supremo.

José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor aposentado do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringá.

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