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Em matéria penal, no Brasil, vige o princípio acusatório, norma decorrente do due process of law (art. 5º, LIV, CF) e prescrito no art. 129, I, da CF, a exigir que o processo penal seja marcado pela "clara divisão entre as funções de acusar, defender e julgar, considerando-se o réu como sujeito, e não como objeto da persecução penal” (ADI 4414, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 31/05/2012).
A investigação preliminar, no processo penal brasileiro, é conduzida pela polícia judiciária, sob a supervisão do Ministério Público e da autoridade judiciária. Possui natureza administrativa, nada obstante possam existir atos judiciários, como medidas cautelares que sirvam de apoio à investigação. O juiz, nesta fase, não exerce funções jurisdicionais, vez que não se está diante de uma relação processual, com o estabelecimento do contraditório e ampla defesa.
Estaria o Supremo Tribunal Federal criando um procedimento fora dos marcos constitucionais, uma espécie de direito penal do inimigo? Bem, parece-nos que estamos, neste particular, em um evidente regime de exceção das normas constitucionais no âmbito penal
Há atos judiciários decisórios do juiz (iudicium), porém sem atividade jurisdicional (iurisdictio). Naqueles, o juiz decide como juiz de garantias, fazendo parte da investigação pré-processual; neste, o juiz atua como juiz de instrução processual e julgamento, é dizer, exercitando na essência a função jurisdicional, em que deve agir com a terzietà (qualidade de terceiro estranho às partes e com respeito a paridade de armas), que comumente não age naquele momento da investigação.
No inquérito das fake news, no das milícias digitais e no dos atos antidemocráticos, a investigação é conduzida sob o comando de quem irá julgar os processos (quando e se houver). São procedimentos pré-processuais, sem natureza jurisdicional (portanto sem a observância da ampla defesa e do contraditório), em que o juiz relator atua de ofício, por vezes sem ouvir o Ministério Público, determinando medidas de investigação e medidas cautelares (prisão preventiva, busca e apreensão, suspensão de perfis em plataformas digitais, cancelamento ou apreensão de passaporte, uso de tornozeleira eletrônica, horário de recolhimento, etc.).
Não raro, essas medidas têm sido tomadas apenas com base em relatórios feitos por órgão estranhos ao próprio STF, como setores do TSE, sob a orientação do relator, que em seguida toma a decisão judiciária, não raro sem que seja dada qualquer sequência ao inquérito. A medida cautelar se esgota nela mesma, deixando de ter natureza instrumental e se transformando, na prática, em antecipação de pena sem que exista sequer processo iniciado.
De fato, houve empresários que tiveram medidas judiciárias invasivas por causa de uma notícia de diálogos em grupo de mensagens, em que foram realizados congelamento de ativos, busca e apreensão, suspensão de perfis em redes sociais, sem que houvesse, posteriormente, qualquer denúncia e processo judicial instaurado. Houve empresários cujos perfis foram desbloqueados em suas redes sociais apenas um ano depois, sem que qualquer processo fosse contra eles instaurado em tempo algum.
Algumas dessas medidas judiciárias são tomadas sob sigilo, como em caso de suspensão dos perfis em redes sociais ou a sua desmonetização ou, ainda, a redução do seu alcance, sem que o "investigado" sequer seja informado das medidas, suportando apenas as suas consequências. As próprias plataformas recebem a ordem sob sigilo e com a expressa proibição de informar àqueles que sofrem o peso da decisão judiciária quais as suas causas.
Para completar, a 1ª Turma do STF, em recursos propostos pelas plataformas contras essas decisões, passou a decidir que elas não teriam legitimidade para discutir a legalidade ou constitucionalidade da ordem emanada pelo juiz de garantias que afetasse terceiros, devendo apenas cumpri-la. De modo que o terceiro que sofre os efeitos da decisão judiciária sigilosa, sem sequer saber que as limitações em sua esfera jurídica decorrem dela, não tem nem como nem a quem recorrer, enquanto a plataforma, que recebeu a ordem sigilosa, estaria impedida de questioná-la.
Como conjugar essa prática com os direitos e garantias individuais previstos como cláusulas pétreas constitucionais? Estaria o Supremo Tribunal Federal criando um procedimento fora dos marcos constitucionais, uma espécie de direito penal do inimigo? Bem, parece-nos que estamos, neste particular, em um evidente regime de exceção das normas constitucionais no âmbito penal.
Adriano Soares da Costa, advogado, é presidente do Instituição Brasileira de Direito Público (IBDPub).
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos