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Quando o Supremo Tribunal Federal decide em desacordo com o que se identifica como certa vontade popular, surgem questionamentos quanto à legitimidade democrática de suas decisões, crítica que se pauta, precisamente, sobre o que se convencionou chamar de “caráter contramajoritário” do tribunal. O caráter contramajoritário de juízes e tribunais, desde há certo tempo, vem sendo discutido nas academias, particularmente no campo da teoria constitucional e da filosofia política contemporâneas. Trata-se de discutir tese segundo a qual juízes e tribunais, por carecerem de lastro eleitoral imediato para o exercício de suas funções, profeririam decisões dotadas de sensível déficit de legitimidade; em outras palavras, profeririam decisões menos democráticas que aquelas tomadas em processos político-legislativos de tomada de decisão.

Esse discurso, que denuncia e critica certa dimensão contramajoritária de juízes e tribunais, teve desenvolvimentos seminais a partir de contribuições teóricas do professor romeno Alexander Bickel, radicado nos Estados Unidos. Bickel, professor da Universidade de Yale, elaborou obra referencial sobre o tema, cujo título é The Least Dangerous Branch, publicada em 1962. Nessa obra, Bickel apresenta o Poder Judiciário, tal qual enuncia o título, como o ramo de poder político “menos perigoso” para a democracia, dado o modo de investidura de seus membros, e também as prerrogativas e princípios, políticos e jurídicos, de regência no exercício da função pública. O autor chega a essa conclusão não sem antes denunciar justamente o que veio a chamar de caráter contramajoritário das cortes judiciais de jurisdição.

Como caráter contramajoritário do Judiciário, Bickel – e uma grande parcela de pensadores que lhe sucederam – compreende, precisamente, o fato de que juízes não eleitos possam vir a adotar decisões contrárias à vontade de maiorias ocasionais, sendo que essa vontade estaria presente – ou melhor representada – no âmbito das casas legislativas. Precisamente, Bickel ocupa-se em refletir sobre o instituto da judicial review – conhecido, entre nós, grosso modo, como “controle judicial de constitucionalidade” –, dado que controle judicial da constitucionalidade significa justamente a possibilidade de que juízes e tribunais revisem o conteúdo de opções legislativas, cassando-as em situações concretas (ou em abstrato, como ocorre, por exemplo, no caso brasileiro). Eis, portanto, o que Bickel veio a chamar de “dificuldade contramajoritária” do Judiciário.

Uma Constituição não se resume a texto, mas é prática

A tese de Bickel encontrou e tem encontrado acolhida dentre inúmeros juristas e filósofos políticos. O caráter contramajoritário do Judiciário levaria ao que parcela da doutrina nomeia de “déficit de legitimidade” da jurisdição. Posta a crítica, esforços doutrinários (justificatórios, é verdade) têm sido apresentados. No campo da teoria jurídica, um exemplo é o do autor alemão Robert Alexy, para quem, se atos judiciais não possuem legitimidade democrática por representação, possuem, por outro lado, legitimidade democrática por argumentação. Outros autores valem-se do preceito fundamental da separação de poderes para compreender – com base na doutrina norte-americana – que a possibilidade de revisão judicial de atos legislativos integra o que se conhece como sistema de freios e contrapesos entre os poderes da República.

Há, de fato, diferenças no que diz respeito ao tratamento do tema em distintos ordenamentos jurídicos. No caso brasileiro, a questão merece ser observada com detalhamentos. No sistema jurídico-constitucional positivo brasileiro, atribui-se a juízes e tribunais competência para revisar amplamente o conteúdo de leis e atos normativos. Isso está previsto no artigo 5.º, XXXV da Constituição, de acordo com o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”; e, também, em outros dispositivos constitucionais. Uma interpretação sistemática da Constituição, alinhada à prática jurídico-constitucional brasileira, leva a concluir que dificilmente uma lei ou ato do Poder Executivo passará imune à apreciação judicial. É claro que juízes e tribunais podem optar por seguir as opções legislativas, e não superá-las. Todavia, não é o que se experimenta na prática. Por essa razão, para que se possa discutir o que se identifica como “caráter contramajoritário” do Judiciário, parece ser preciso divisar o tema em duas frentes: caráter contramajoritário de juízes e tribunais e caráter contramajoritário de suas decisões.

A questão se coloca porque nem sempre as decisões dos tribunais podem ser consideradas, de fato, contramajoritárias. Cite-se, como exemplo, o histórico de posicionamentos do Supremo Tribunal Federal acerca da equiparação de direitos civis entre casais homoafetivos e heteroafetivos. Desde 2011, o Supremo – e, também, o Conselho Nacional de Justiça – tem proferido decisões que reconhecem a igualdade entre casais homo e heteroafetivos, o que tem produzido efeitos jurídicos em diferentes áreas do direito (família, previdenciário e sucessões, por exemplo). Acórdãos que podem ser considerados paradigmas sobre o tema são a ADI 4.277 e o RE 646.721, este último decidido recentemente pelo Supremo Tribunal Federal. É notória, portanto, e pelo menos em determinados casos, a preocupação do tribunal em alinhar suas decisões com demandas contemporâneas da sociedade, sobretudo quando o legislador se apresenta inerte ou, justamente, atua sem ouvir grupos subrepresentados no Congresso Nacional. Lembre-se, a título de exemplo, das tão resistidas reformas trabalhista e previdenciária. Pergunta-se: o Congresso Nacional, composto segundo o critério majoritário, reflete os anseios do universo de eleitores?

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O próprio Alexander Bickel concluiu, em determinado momento: “A Corte representa a vontade nacional contra particularismos; mas ela não o faz da mesma maneira que o Congresso faz, por responsabilidade eleitoral”.

É preciso observar que o problema da dificuldade contramajoritária de juízes e tribunais não é novo. Surge, porém, a cada vez que o Supremo Tribunal Federal é chamado a resolver casos difíceis, e se coloca na posição de guardião da Constituição Federal. E, então, surgem perguntas: o que diz, afinal, a Constituição Federal a esse respeito? É possível o Supremo, enquanto corte singularmente considerada, extrair conteúdos da Constituição? Afora o fato de que representação política, representação eleitoral e mandato são conceitos que não se confundem, sabe-se que uma Constituição não se resume a texto, mas é prática; como observa Vera Karam de Chueiri, prática de uma comunidade política que se reconhece como tal (como uma comunidade política assim, por si mesma, considerada).

Ministros do Supremo Tribunal Federal não são eleitos, é verdade. Todavia, não por esse motivo deixam de atuar como agentes políticos na comunidade em que se inserem e a qual constituem. Evidentemente, disso resulta que contribuem na construção de sentido da nossa Constituição. Trata-se, afinal, e acima de tudo, de um órgão político. Alexander Bickel, logo no início de seu The Least Dangerous Branch, observa que “A Constituição deve ser lida como um todo, e de acordo com o seu propósito”. Cabe à comunidade de intérpretes da Constituição, cada qual dentro de suas funções, realizar essa salutar leitura.

Ana Lucia Pretto Pereira, mestre e doutora em Direito Constitucional e pós-doutora em Processo Constitucional, é professora na graduação e no mestrado da UniBrasil.
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