As democracias enfrentam perigosa quadra histórica. Com velocidade impressionante, as instituições definham entre arranjos manifestamente anacrônicos e superados. Não há como negar a realidade. Os fatos estão aí, em cores vivas, pulsando em alto e bom som nas telas de smartphones da cidadania global. No todo, as sociedades contemporâneas apresentam urgentes demandas instantâneas em ondas Wi-Fi, mas a política, com seus métodos bizantinos, apenas consegue respostas frias, cozinhadas em fogão à lenha.
Ora, não tem como dar certo. O descasamento de perspectivas é evidente. Ou as instituições democráticas mudam ou serão mudadas pelas circunstâncias. O grave e não menos preocupante é que mudanças aleatórias, movidas sem arte e inteligência humana, podem guiar a civilização a tempos sombrios. Definitivamente, não precisamos repetir o passado, pois o futuro abre oportunidades mais promissoras. Para tanto, teremos de agir no presente, pois o amanhã se faz agora.
No Brasil, o desarranjo institucional tem sido compensado por uma aguda hipertrofia de poder do Supremo Tribunal Federal. Com um Executivo fragilizado e um Congresso Nacional inorgânico, enredados em profunda incapacidade de construção de maiorias políticas virtuosas, o colendo STF acabou sendo progressivamente provocado a se manifestar sobre temas sensíveis à democracia, adquirindo ostensiva primazia na cena política, quando, tecnicamente, deveria exercer sua autoridade com absoluto resguardo, moderação e comedimento.
Sem cortinas, um tribunal extraordinário não pode ter funções ordinárias. Tal situação contraria sua natureza suprema, banalizando a autoridade constitucional aos olhos da nação. É imperioso, portanto, que o Supremo retorne à sua alta e invulgar função institucional. Definitivamente, não cabe à corte ser uma recorrente UTI de questiúnculas políticas menores, cujas soluções devem ser buscadas no próprio tecido parlamentar em conjunção aos interesses do governo estabelecido. Da mesma forma, o STF não pode aceitar ser um plantão judicial de poderosos encardidos, como se a ordem legal permitisse atalhos ou mágicas processuais de última hora, em total desrespeito ao caráter sistêmico da jurisdição.
O fato é que a “supremocracia” não é uma alternativa válida às insuficiências democráticas. Ou seja, a democracia se resolve pela política, cabendo aos tribunais o rigor técnico da aplicação da lei. A lição é de sobremaneira antiga e, talvez por isso, um tanto esquecida.
Em precedente histórico de 15 de abril de 1914, a inteligência do ministro Amaro Cavalcanti conduziu a maioria da corte a firmar tese no sentido de que “uma vez conferida a um dos poderes políticos, criados pela Constituição, uma atribuição para a prática de dado ato, ou para o uso de dada faculdade, é ele o único juiz competente da oportunidade e razões determinantes do respectivo ato, ou do uso de sua faculdade; o contrário seria a negação completa de sua independência”. Logo, a confusão de competências institucionais é a raiz do desequilíbrio republicano, devendo ser evitada ou corrigida quando se manifestar.
Em complemento, a sabedoria invulgar de Paulo Brossard bem ponderou, em O impeachment, que “afeitos à aplicação da lei, consoante métodos estritamente jurídicos, é duvidoso que, de ordinário, os juízes tenham condições para decidir acerca de fatos que, por vezes, transcendem a esfera da pura legalidade, inserem-se em realidades políticas, vinculam-se a problemas de governo, insinuam-se em planos nos quais a autoridade é levada a agir segundo juízos de conveniência, oportunidade e utilidade, sob o império de circunstâncias imprevistas e extraordinárias”.
A lição acima, no pouco, diz muito. Demonstra que as lógicas da política transcendem a norma posta, exigindo critérios e medidas que não podem ficar petrificados no seio de sentenças judiciais, sujeitas à imutabilidade da coisa julgada. Isso porque a democracia é dinâmica, exigindo diário e continuado exercício político, por meio de soluções tidas por impossíveis, mas que, com tato e talento, surgem no horizonte da República.
Por tudo, a linha que separa a política do jurídico é tênue e sensível às pulsantes circunstâncias da realidade vivida. No atual contexto transformador, cabe ao tribunal constitucional bem discernir o cabimento, a necessidade, as consequências e os limites de sua atuação institucional soberana. Porque aquilo que supremo é não pode ficar sujeito a banalidades ordinárias. A hora exige ponderação reflexiva, pois, como bem disse o bom e velho Aliomar Baleeiro, “o único meio de o Supremo Tribunal Federal construir a Constituição é por esse processo de tentar, errar e corrigir o erro”.
Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.
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