Poucas vezes vi a sociedade participativa num debate sobre o patrimônio histórico. O incêndio no Museu Nacional e na Notre-Dame de Paris teve efeito de comoção, mas o Teatro Paiol de Curitiba ocasionou um debate interessante acerca das teorias da conservação, além de comparações bizarras. Até um amigo que na adolescência fora pichador ficou indignado com o reboco no antigo depósito de pólvora – embora sua biografia seja de desprezo por monumentos.
Eugène Emannuel Viollet-le-Duc (1814-1879), arquiteto francês, compreendia a intervenção de restauro como recuperação da forma conceitual, propondo uma espécie de revivalismo do edifício degradado através da restituição das partes perdidas. Já John Rusk (1819-1900), britânico, severo crítico de arte, tinha um pensamento de censura à restauração, referida por ele como um falseamento.
Muito antes que o século XIX gerasse os teóricos da arquitetura, Plutarco (46-120), filósofo grego, propôs uma reflexão sobre a identidade das construções humanas ao narrar a saga mitológica do navio de Teseu, que ao empreender uma viagem de cinquenta anos pelo Mar Egeu fez trocar todas as partes deterioradas do seu barco naquela desgastante travessia. A questão colocada é se a embarcação que partiu era a mesma que chegou, já que todos os elementos foram substituídos: tábuas, mastros e velas.
A perda de atributos originais, aparentemente, diminui a concepção da identidade, pois a reunião das características primárias é que categorizam a essência de um conjunto. No entanto, a forma permanece, mesmo com possíveis remoções ou trocas: Teseu chegou com seu navio. O que sugere que o significado está fora das inevitáveis contingências da materialidade.
O Teatro Paiol sem a sua pátina parece perder muito de sua história. Suas cicatrizes parecem ter sido apagadas. Um pasmo para a memória afetiva de gerações de curitibanos. Todavia, o que consta no laudo de patologias é que sem um reboco que servisse de revestimento protetor, logo as estruturas das paredes estariam comprometidas. Desse modo, entende-se que a atual intervenção pretendeu garantir maior durabilidade ao edifício, do que preservá-lo como uma ruína histórica. Concordemos que o edifício não é uma carcaça rememorando um antigo depósito de munições finalizado em 1906. É um teatro, símbolo da Fundação Cultural de Curitiba. Importa considerar o uso e enaltecer seu significado, que não muda com a cor.
O debate desses últimos dias foi interessante. Suscitou reflexões, alguns memes debochados, fez convencer as instituições públicas e acadêmicas que as teorias do restauro se chocam abruptamente, e isso é incontornável. Não existe uma fórmula padrão aplicável a todos os monumentos.
Dessa polêmica, eu desperto minha atenção para uma fatalidade da existência: o tempo tudo consome. O que o fogo faz imediatamente àquilo que toca, o tempo faz lenta e gradativamente conosco e com nosso patrimônio. Contudo, tentamos inibir seus efeitos, num confronto acirrado para permanecer mais um pouco, resistindo ao fado da deterioração. Às vezes alguns itens ficam para trás. Para ir mais adiante, Teseu precisou trocar as velas do navio. Não por critérios insuficientes, mas para poder chegar.
Khae Lhucas Ferreira Pereira é doutorando em Filosofia pela UFPR e aluno da Escola de Patrimônio da UTFPR.
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