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Não foi incontinência verbal, desabafo involuntário ou exaltação momentânea. Ao defender com tanta ênfase a democracia chavista, o presidente Lula obedecia a um script meticuloso. Talvez, no íntimo, não tenha o apreço que apregoa pelo colega venezuelano ou pelo seu social-caudilhismo, mas a entrevista coletiva no ambiente protocolar do Itamarati atendia a um item importante do cronograma político-eleitoral.

Para os estrategistas palacianos, depois de algumas vacilações, passou a ser importante tirar do armário o tema "terceiro mandato". Para eles, essa é uma discussão que precisa aflorar, tornar-se natural, livrar-se dos tabus que a envolvem mesmo se relacionada à conjuntura do Cazaquistão, Líbia ou Zimbabwe.

Calhou que o pretexto fosse Chávez cujos planos continuistas envolvem muito mais do que uma nova candidatura e configuram uma opção nitidamente totalitária. A expressão "terceiro mandato" precisava ser mencionada, tornar-se habitual. Os ouvidos da Senhora Opinião Pública devem acostumar-se a estes sons. A questão da alternância no poder, segundo o mesmo raciocínio, deve entrar para o debate cotidiano, perder a aura dogmática, intocável e intangível e, pela exposição, adquirir a necessária flexibilidade e relativismo. Isso não significa que a hipótese do terceiro mandato aqui no Brasil já esteja sendo seriamente cogitada. Significa apenas que está sendo devidamente habilitada para ficar disponível, sem pudores. Ao menos para uma emergência. Ou, como se diz no jargão empresarial, Just in Case.

A mesma tática foi adotada pelo candidato-presidente Lula nas últimas eleições, meados do ano passado quando, inopinadamente, começou a bater na mídia nos eventos-comícios. A iniciativa pareceu despropositada e delirante, àquela altura a mídia já não o incomodava com o mensalão. Mas poderia voltar a fazê-lo na reta final da campanha, por isso fazia-se necessário uma terapia preventiva e neutralizadora. Os manuais castrenses designam o estratagema como uma forma de provocar o adversário a sair das trincheiras para ser liquidado. Assim, quando os "aloprados" produziram o Dossiê Vedoin, estava preparado o clima para que a tropa de choque ligada ao governo saísse à rua para protestar contra o "complô da mídia".

Tanto o presidente Lula como seus escudeiros sabem discernir as diferenças entre o presidencialismo e o parlamentarismo e não se importam em confundir longas permanências de primeiros-ministros em seus cargos com as presidências ditas "imperiais".

O baralhamento é deliberado, tira o eventual terceiro mandato do plano da ciência política para o plano real. Embora o PT tenha se declarado antiparlamentarista no plebiscito de 1993, o pseudo-continuísmo propiciado por primeiros-ministros como Margaret Tatcher, Tony Blair, Helmuth Kohl e Felipe González, serve como um exercício de convivência com a noção de que o exercício prolongado do poder não agride a essência da democracia. Como aprendemos nos anos 20 do século passado, a política para as massas exige fortes doses de simplificação.

Convém notar que os esclarecimentos do presidente sobre o terceiro mandato de Chávez foram prestados na véspera de um feriadão, com isso garantiu-se durante alguns dias sua permanência no noticiário e sua acomodação à pauta política. Quanto mais se falar em terceiro mandato – mesmo contra – mais fácil se tornará a tarefa retomar o assunto quando for necessário.

O pior desta história é que o uso do paradigma Chávez para justificar opções no cenário nacional nivela indevidamente os dois regimes. A Venezuela há muito deixou de ser uma democracia representativa, é um Estado autoritário com fortes contornos fascistas e militaristas.

O Brasil, ao contrário, tem sólidas instituições republicanas. Falar abertamente em terceiro mandato – como agora foi decidido – não ameaça a democracia. Minimizar o que se passa na Venezuela, traz de volta horríveis fantasmas. Inclusive o do Estado Novo.

Alberto Dines é jornalista.

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