Eu tenho sotaque. E você também.
Sou um imigrante que passou quase tanto tempo nos EUA quanto na minha terra natal, a Espanha. Sou também diretor dos cursos de Espanhol e Português do Dartmouth. Os dois fatos explicam, mas apenas em parte, por que sinto um carinho especial pela série dramática do FX, The Americans, na qual Keri Russell e Matthew Rhys interpretam Elizabeth e Philip Jennings, um casal que mora em um subúrbio de Washington, mas que, na verdade, é uma dupla de agentes disfarçados da KGB. E tenho certeza de que não fui a único a balançar a cabeça, em aprovação, ao saber ambos indicados ao Emmy na semana passada.
O que me interessa como linguista é que os Jennings são, como o piloto nos diz, “espiões supersecretos que moram na casa ao lado e falam um inglês melhor que o nosso”. Nem mesmo o vizinho deles, um agente do FBI especializado em contrainteligência, suspeita de alguma coisa.
Vivendo a minha rotina, profundamente envolvido no trabalho do ensino e aprendizado de segundas línguas, foi divertido assistir a um seriado de TV no qual a aptidão dos personagens principais era tão importante para a trama; apesar disso, a premissa de que você pode falar uma língua sem absolutamente nenhum sotaque é exagerada. Na verdade, não é nem possível.
Pior ainda, o fetiche com alguns sotaques e o desprezo por outros pode levar a uma discriminação real em entrevistas de emprego, avaliações de desempenho e acesso a moradia, para citar apenas algumas áreas nas quais exibir ou não determinada pronúncia tem consequências profundas. Frequentemente, no hospital ou no banco, no escritório ou em um restaurante – e até na sala de aula – assumimos a ideia de que nossas palavras têm de soar de maneira correta e que o sotaque perfeito não é só inaudível, mas também invisível.
O fetiche com alguns sotaques e o desprezo por outros pode levar a uma discriminação real em entrevistas de emprego
Se você analisar a questão do ponto de vista sociolinguístico, a ausência de sotaque é simplesmente impossível. A pronúncia é meramente uma forma de falar moldada por uma combinação de geografia, classe social, nível de escolaridade, etnia e língua mãe. Eu tenho, você tem, todo mundo tem. Não existe essa coisa de inglês perfeito, neutro e sem sotaque – ou espanhol, ou qualquer outra língua. Dizer que alguém não tem sotaque é tão crível quanto dizer que alguém não tem feições.
Sabemos bem disso, mas, mesmo assim, em um momento em que a porcentagem de habitantes estrangeiros nos EUA alcançou o ponto mais alto do século, a diferença entre “nativo” e “não nativo” tornou-se cruel, e é por isso que vale a pena ter em mente o tempo todo que ninguém fala sem sotaque.
Quando dizemos que alguém “fala carregado”, geralmente isso significa duas coisas: uma pronúncia não nativa ou a chamada “pronúncia fora do padrão”. E ambas podem gerar consequências para quem fala. Em outras palavras, vale reconhecer que há quem discrimine com base no sotaque dentro do próprio grupo linguístico, e não só aqueles que são considerados “estranhos” ao idioma. O privilégio do sotaque padrão, como se pode imaginar, obviamente está baseado no nível de escolaridade e poder socioeconômico.
Entretanto, não é necessariamente aquele que é considerado o de maior status; é simplesmente o dominante, o que mais comumente se ouve na imprensa, o que é considerado “neutro”. O sotaque nativo fora do padrão também é sub-representado na mídia e, como o não nativo, tem grandes chances de ser estereotipado e ridicularizado. Expressões como “fala arrastada” do Sul, “nasalização” do Meio Oeste ou o “upspeak (entonação ascendente no final da frase) da mocinha californiana” enfatizam o status relacionado a uma determinada forma de falar.
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Esses julgamentos são puramente sociais; para os linguistas, as distinções são arbitrárias. Entretanto, a noção de um sotaque perfeitamente neutro é tão disseminada que aqueles que têm o sotaque estigmatizado quase sempre acabam internalizando o preconceito de que são vítimas. A reavaliação recente do personagem Apu, de Os Simpsons, é um exemplo importante de como a imprensa e a cultura popular usam o sotaque para fazer piadas fáceis – e desconfortáveis.
Quando você está aprendendo um idioma, o sotaque forte geralmente é acompanhado de outras características, como vocabulário limitado ou erros gramaticais. Em sala de aula, sabemos que essa é uma fase normal no desenvolvimento da fluência. Minha família em Madri, por exemplo, teria dificuldade em compreender o espanhol dos meus alunos anglófonos no primeiro semestre do curso.
Depois, esses mesmos estudantes vão estudar fora, seja em Barcelona, Cuzco ou Buenos Aires e terão problemas para serem compreendidos, mas aí entra o privilégio do inglês, praticamente universal: ninguém que ouça seu sotaque norte-americano presumirá que são menos capazes, menos ambiciosos ou menos honestos do que se seus “Rs” rolassem melhor na língua. Entretanto, é exatamente essa a presunção gerada pelo sotaque espanhol – e muitos, muitos outros – nos EUA.
É inegável que uma pronúncia muito forte pode dificultar a compreensão. Quem aprende o inglês como segunda língua precisa trabalhar constantemente esse aspecto. Como professor, procuro orientar meus alunos com base em uma versão desse ideal meio fajuto do “sotaque nativo”. Uma das ironias disso é que eu – assim como a grande maioria dos professores de mais de vinte países (não contando Porto Rico) que tem o espanhol como língua oficial –, há tempos me livrei as entonações regionais, marcadas pela classe social e vocabulário que são, ou já foram, características nativas. O que quero dizer é que não é preciso esquecer a comunicação facilmente compreensível como objetivo; essa ainda é a meta. O que precisamos deixar de lado é a ilusão de que há apenas uma forma verdadeira e autêntica de falar.
Não existe essa coisa de inglês perfeito, neutro e sem sotaque – ou espanhol, ou qualquer outra língua
O inglês é uma língua universal, com um sem-fim de variantes. O número de falantes não nativos supera o de nativos em uma proporção de três para um. Mesmo nos EUA, país que tem a maior população nativa de anglófonos, há, de acordo com uma estimativa, quase 50 milhões de pessoas que usam o inglês como segunda língua. Aliás, o que significa “parecer nativo” quando o idioma não é a língua mãe de tanta gente? A menos que você seja um espião disfarçado como os Jennings, é contraproducente manter o sotaque nativo como o objetivo de vida.
O próprio sotaque é uma medida fútil de avaliação do domínio do idioma, o equivalente linguístico a contratar alguém pelo visual. Em vez disso, devemos nos tornar mais conscientes de nossos preconceitos linguísticos e aprender a ouvir mais profundamente antes de fazer julgamentos. Como é o vocabulário dessa pessoa? Variado, grande? Ela consegue participar da maioria das interações diárias? Quantos detalhes consegue fornecer ao recontar uma história? Consegue sustentar os próprios argumentos em uma discussão?
A discriminação baseada no sotaque não é apenas um conceito acadêmico; experimentos mostram que as pessoas tendem a fazer presunções estereotipadas sobre os falantes com sotaque não nativo, cujo efeito acaba se estendendo aos nativos cujos nomes e/ou etnias parecem estrangeiros. Os estudos mostram que quando um anglofalante não nativo responde a um anúncio de moradia, seu diálogo com o proprietário, em média, tem maiores chances de não dar em nada do que daqueles “que não têm sotaque”.
Só espero então que vocês gostem do meu sotaque tanto quanto eu gosto do seu.