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Opinião do dia 1

Todos cansamos

Independente da avaliação que um dia será feita do governo Lula, uma coisa já se pode afirmar: foi um tempo de retrocesso na mobilização popular. Os sindicatos, a UNE, o MST, os empresários, todo o movimento social se acomodou. A população pobre aceitou a Bolsa Família como uma grande dádiva, sem necessidade de qualquer reivindicação. Os intelectuais escolheram o "silêncio reverencial".

Nesse quadro, felizmente surge um movimento contestador. Um grupo de personalidades, principalmente das artes e da publicidade, lançou um manifesto dizendo que se cansou da situação. Mas é uma pena que tenham demorado tanto para se cansar, em um país com concentração de renda, calamidade nos serviços de saúde e educação e corrupção tão nítida. E é uma vergonha que tenham se cansado somente da violência que aparece nas ruas, sem verem a violência que causa a violência.

Eu também cansei. Cansei dos assaltos nas esquinas, dos seqüestros nas ruas. Mas cansei do roubo secular como os privilegiados se apropriam do que seriam os direitos dos pobres; cansei da violência que fabrica violência, ao roubar as oportunidades dos meninos jogados na criminalidade.

Cansei do atraso nos aeroportos, mas também dos apagões nas paradas de ônibus, onde milhões de trabalhadores e estudantes esperam, debaixo de sol e de chuva, sob ameaça de assaltos, sem terem a quem reclamar, sabendo que sua tragédia será ignorada pelos jornais. Do apagão da saúde nas filas dos hospitais, na cara doente do povo, no olhar de crianças assustadas e mães angustiadas. Cansei dos que se cansaram dos aviões atrasados, mas sempre se omitiram ante um país que não decola.

Cansei dos que gritam contra a corrupção no comportamento dos políticos, mas usufruem da histórica corrupção nas prioridades da política. Cansei da humilhação dos baixíssimos salários dos professores, mas também dos sindicalistas que não se ocupam da tragédia das escolas fechadas pela guerra civil dos morros ou por greves intermináveis.

Cansei dos artistas e apresentadores que se cansaram da corrupção, mas sempre votaram em corruptos, e votarão neles nas próximas eleições, pois preferem um corrupto amigo a um honesto que não é de sua turma. Cansei dos publicitários que se cansaram da corrupção, mas na próxima eleição farão alegremente campanha para os corruptos que lhes pagarem bem.

Cansei de um país que se diz sem racismo, mas não aceita o uso de cotas para aumentar o número de estudantes negros na universidade. Também cansei do elitismo do movimento negro que se interessa pelas cotas para os poucos que querem entrar na universidade, mas ignora os milhões de pobres, negros ou brancos, abandonados no caminho educacional, antes de concluírem o ensino médio.

Cansei da acomodação dos milhões de pobres que aceitam que seus pais e mães morram nas filas dos hospitais e sacrificam passivamente o futuro dos seus filhos, em escolas sem qualidade.

Cansei, acima de tudo, da aparente impossibilidade de colocarmos juntos os cansados, que têm medo de perder seus privilégios, e os pobres, acomodados na sua falta de direitos. Cansei, mas ainda tenho esperança de que um dia os cansados tenham patriotismo e os acomodados tenham consciência. E que juntos lutem por um país com uma escola boa para cada criança, independentemente da cidade ou da família em que tenha nascido.

Cansei também de tanta gente achar que isso é um sonho impossível. Só não cansei de achar que ainda vale a pena acreditar que vale a pena. Cansei, mas não me desesperei, ainda.

Cristovam Buarque é professor da Universidade de Brasília e senador pelo PDT/DF.

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