Somos culpados, sem exceções, pelo apocalipse climático. E somos vítimas, indistintamente, da barbárie que se infiltrou sorrateira e agora domina este impávido colosso.

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Mesmo aqueles abrigados em carros blindados, mesmo os ilesos que escapam das balas perdidas, mesmo os que jamais estiveram no meio de um tiroteio, de um arrastão e nunca foram ameaçados dentro de um ônibus, mesmo os que sobreviveram a seqüestros ou ainda não experimentaram a tortura da extorsão pelo telefone, estamos todos irremediavelmente igualados pela violência.

Cordiais ou apenas afáveis, qualquer que seja o grau de bonomia atribuído pelos antropólogos à nossa natureza, a verdade é que estamos sendo filmados o dia inteiro e neste painel captado por milhares de câmeras ficamos irreconhecíveis.

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Nossas feições estão alteradas, talvez para sempre. Medo e indignação deixam marcas indeléveis, também o rancor e o ressentimento, também a insensibilidade e o cinismo. A cegueira dos que se recusam a enxergar, a surdez dos que não querem ouvir e a apatia dos que não querem mexer-se, acabam por aparecer nos rostos e posturas. O clamor por vingança, mesmo engolido, altera as vozes para sempre.

O retrato do país que emerge do noticiário nada tem a ver com a imagem que temos de nós mesmos. Não adianta reclamar do retratista, o problema está no retratado. Sem uniformes de prisioneiros, bem nutridos, bronzeados e devidamente carnavalizados, estamos sendo tocados em direção de um campo de concentração engendrado por aqueles que abominam nossos traços naturais e pretendem mudá-los à força.

As ditaduras (duas, num total de 36 anos ao longo de 55), os constantes apelos à violência política, a corrupção entranhada nas instituições e uma justiça concebida e organizada para ser essencialmente injusta, arquitetaram uma das mais perversas transformações fisionômicas já sofridas por uma sociedade. Claro que a Alemanha do período 1918-1945 bate todos os recordes de metamorfose, mas podemos chegar perto no momento em que as vítimas, cansadas de ser vítimas, vestirem a toga para fazer justiça com as próprias mãos.

Quando o presidente Lula, revoltado pela onda de atentados no Rio, num dos discursos da segunda posse, designou os narcotraficantes como terroristas, passou a impressão de que, afinal, o Estado brasileiro despertava da letargia e começava a defender-se.

Mês e meio depois, o saldo desta reação é lamentável. Além das reuniões, grupos de trabalho, discursos e comunicados, restou a constatação de que a Força Nacional de Segurança Pública é um fiasco ou, na melhor das hipóteses, uma balela. Sem apoio logístico local ela não tem como atuar por longos períodos, não existe na prática.

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A pergunta que perturba vai na direção contrária do pronunciamento presidencial: podem ser classificados como terroristas os dois bandidos responsáveis pela morte de João Hélio Fernandes Vieites, seis anos, arrastado ao longo de sete quilômetros preso ao cinto de segurança do carro roubado de sua mãe, no Rio?

Um dos bandidos tem 18 anos, outro 16, menor de idade, ambos sem antecedentes criminais, aparentemente usaram armas de brinquedo, nenhuma relação visível com o crime organizado. Lúcidos no momento do crime, mas certamente ávidos por dinheiro para drogar-se depois de consumado.

Estes facínoras amadores é que assustam, fazem parte das legiões de jovens que se deixam levar pelas miragens do narcotráfico e, sobretudo, não se preocupam com a reação do Estado. Sabem que serão presos, mas têm certeza de que serão soltos. De uma forma ou de outra.

São filhos de uma imensa terra-de-ninguém onde há leis, mas não há legisladores capazes de ajustá-las à realidade, onde há castigos, mas a impunidade é cultuada como religião. Nesta terra-de-ninguém onde vivemos há políticos bem falantes, bem lustrados e bem intencionados, legítimos representantes das vítimas, porém incapazes de sentirem-se como os próximos assaltados, seqüestrados ou trucidados.

Alberto Dines é jornalista.

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