Existem dois tipos de alma: ou você está próximo de Dostoiévski (1821-1881) ou de Tolstói (1828-1910). Talvez pareça excessivamente chique uma divisão dessas, mas, ao fim dessa coluna, espero que fique menos obscura a clareza desse critério.
Essa é a tese do crítico George Steiner em seu maravilhoso livro Tolstói ou Dostoiésvki, da editora Perspectiva. Um dos livros mais belos que já li na vida. Próximo ao Obras do Amor, de Kierkegaard (1813-1855), que é de longe o livro mais belo escrito em filosofia ou teologia que conheço.
A beleza e o amor suspendem a vida acima da banalidade do cotidiano. Despertá-los talvez seja a missão mais sublime que alguém pode ter na vida com relação aos seus semelhantes.
Uma das forças da literatura clássica é nos fazer conhecer a nós mesmos. Sei que está na moda dizer que não existe literatura clássica, mas deixemos de lado essa discussão entediante.
A tipologia que nos propõe Steiner deita raízes nos dois estilos gregos: o épico e o trágico. Tolstói estaria no primeiro; Dostoiévski, no segundo. E, por consequência, são dois modos distintos de viver a vida. Ambos carregando a grandiosidade de espíritos avassaladores, como os dois escritores russos.
O épico seria o estilo em que a vida está envolvida pela presença do mito ou da religião, fundando uma ação fincada na esperança prática do transcendente (mundo dos deuses) e, por consequência, na esperança da redenção do mundo. Salvar o mundo é sua marca. Pessoas épicas sentiriam que suas vidas são acompanhadas por forças que as tornam capazes de redimir o mundo de suas misérias. Sua virtude central é a esperança. Por “prática”, aqui, quero dizer que não se trata de um espírito religioso meramente teórico ou alienado do mundo, mas profundamente enraizado nas agonias e demandas do mundo.
A beleza e o amor suspendem a vida acima da banalidade do cotidiano
Para Steiner, Tolstói tem esse espírito de modo bem evidente, entre outros momentos, no período em que escreve Ressurreição, que começou a ser publicado na Rússia em fascículos em 1899. O Conde Tolstói, nessa época, estava bastante envolvido na luta contra as injustiças da Rússia czarista, e abraçou, no fim da vida, uma forma de anarquismo cristão pietista bastante radical.
O trágico seria o estilo em que o olhar para a vida se mantém fincado na fragilidade dela. A precariedade é a estrutura dinâmica da vida. Nas palavras do escritor americano Henry James (1843-1916), uma vida tomada pela “imaginação do desastre”. Aqui não há redenção, há coragem de enfrentar esse “desastre” que é a existência humana. Para Steiner, essa é a alma dostoievskiana. Sua virtude central é a coragem.
Aqui, mesmo que haja o divino, como há em Dostoiévski, o peso do drama cai sobre as costas do homem que caminha sozinho pelo chão do mundo. A beleza de Deus, na forma de “taborização” de seus místicos, como se fala na teologia russa, em referência à transfiguração do Cristo no Monte Tabor, aparece sempre como iluminação da agonia humana a sua volta (basta ver o Príncipe Mishkin do romance O Idiota). O místico em Dostoiévski ilumina por contraste. Sua luz divina faz a doçura do perdão brotar na consciência atormentada do pecador.
Uma alma tolstoiana é uma alma iluminada pela esperança e pela vitalidade que Deus a empresta. Seu elemento é a força de atuar no mundo social e político. Uma alma dostoievskiana é iluminada pela dor e pela coragem que a mantém de pé. Seu elemento é a misericórdia como substância de sua psicologia espiritual.
E como passamos dessa alta teologia para o chão do cotidiano de nós mortais? Almas tolstoianas lutam a cada dia contra a miséria do mundo, fazendo deste um campo de batalha contra o mal, movidas por uma certeza que parece alucinada. Almas dostoievskianas, um tanto mais delicadas, suportam o sofrimento encantando o mundo a sua volta com piedade e sinceridade avassaladoras.
Felizes são aqueles que convivem com pessoas assim. A vida se transfigura em esperança e coragem. Duas faces da graça que sustenta o caminho dos homens. Mas, sem humildade, como sempre, seremos cegos a essas virtudes de Deus.