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Em 27 de setembro, a enfermagem brasileira foi surpreendida por decisão da 20.ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, relativa a uma ação ordinária ajuizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) contra a União federal, “objetivando tutela provisória de urgência para suspender parcialmente a Portaria 2.488 de 2011, tão somente na parte que permite a requisição de exames por enfermeiro, a fim de que seja evitada a prática da medicina por profissionais não habilitados, evitando, assim, que realizem diagnósticos sem orientação médica”. Segundo as razões apresentadas na referida ação, a Portaria GM/MS 2.488/2011, que aprovou a Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), “permite, indevidamente, enfermeiros a realizar consultas e exames, usurpando, assim, as atribuições do profissional médico, único habilitado para realizar consultas, exames e prescrever medicamentos”.

Essa não foi a primeira tentativa do CFM de coibir a atuação do enfermeiro na atenção básica à saúde. Em 2007, numa nota prenhe de equívocos, o CFM invocou suposta anulação de dispositivos de duas normas baixadas pelo Ministério da Saúde: a Portaria GM/MS 648/2006, que regulamentava a Política Nacional de Atenção Básica (Pnab) e a execução da Estratégia Saúde da Família no Brasil; e a Portaria GM/MS 1.625/2007, que alterou as atribuições dos profissionais das Equipes de Saúde da Família (ESF), dispostas na Pnab. Em resposta à nota divulgada pelo CFM, a Diretoria do Departamento de Atenção Básica/Secretaria de Atenção à Saúde/Ministério da Saúde informou que nenhuma disposição legal constante nas portarias mencionadas encontrava-se suspensa ou, menos ainda, anulada por qualquer decisão judicial.

o CFM e a Justiça fizeram uma leitura seletiva da lei que regulamenta o exercício da enfermagem no país

Quanto à Portaria GM/MS 1.625/2007, registre-se que, em sua elaboração, foi considerado o consenso quanto às atribuições dos profissionais médicos e enfermeiros das Equipes de Saúde da Família, estabelecido em reunião realizada em 25 de abril de 2007, a que estiveram presentes representantes do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, do Conselho Federal de Medicina e do Conselho Federal de Enfermagem. Nessa reunião, reafirmando a importância do trabalho em equipe para garantir a assistência integral à população, as palavras do dr. Gerson Zafalon Martins, representante do Conselho Federal de Medicina, expressaram o anseio de todos: “trabalhar junto faz bem à saúde”. Segundo o que ficou acordado, caberia ao enfermeiro: realizar assistência integral às pessoas e famílias na USF e, quando indicado ou necessário, no domicílio e/ou nos demais espaços comunitários; realizar consultas de enfermagem, solicitar exames complementares e prescrever medicações, observadas as disposições legais da profissão e conforme os protocolos ou outras normativas técnicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, os gestores estaduais, os municipais ou os do Distrito Federal.

Em 21 de outubro de 2011, nova portaria GM/MS, a 2.488, é assinada, aprovando a Política Nacional de Atenção Básica e “estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs)”. Quanto ao processo de trabalho das equipes de atenção básica, a nova portaria, além de reafirmar competências do enfermeiro contidas na norma anterior, recomenda, entre outros aspectos, o “planejamento e organização da agenda de trabalho compartilhado de todos os profissionais”; e a realização de “trabalho interdisciplinar e em equipe, integrando áreas técnicas e profissionais de diferentes formações”. Afinal, “trabalhar junto faz bem à saúde”.

Da mesma autora:A solução para organização da atenção básica no país (23 de setembro de 2017)

Certamente, esse não parece ter sido o entendimento atual do CFM ao iniciar a ação ordinária contida no processo 1006566-69.2017.4.01.3400. Nem parece ter sido o entendimento do juiz federal substituto da 20.ª Vara ao decidir “suspender parcialmente a Portaria 2.488 de 2011, tão somente na parte que permite ao enfermeiro requisitar exames, evitando, assim, que realizem diagnósticos sem orientação médica”. Para tal decisão, o magistrado, equivocadamente, utilizou como argumento que “a lei que rege a profissão de enfermeiros não autoriza tais procedimentos, além de estabelecer que o enfermeiro deverá obedecer as determinações prescritas pelo médico, salvo as situações legais previstas”. E continua, afirmando que, “dessa forma, está demonstrado que o ato fustigado [a Portaria GM/MS 2.488/2011], ao permitir que o enfermeiro possa realizar consultas (diagnosticar), exames e prescrever medicamento, foi além do que permite a lei regente da profissão de enfermeiro, sendo, assim, ato eivado de ilegalidade, passível de correção judicial, tudo de modo a evitar danos à saúde pública”.

Ora, tudo indica ter havido uma leitura seletiva da Lei 7.498, de 25 de junho de 1986, que regulamenta o exercício da enfermagem no país. O artigo 11 da referida lei é de uma clareza solar ao se referir às competências do enfermeiro, a quem, entre outras ações, cabe, privativamente, a consulta de enfermagem e a prescrição da assistência de enfermagem; e, como integrante da equipe de saúde, a participação na elaboração, execução e avaliação dos planos assistenciais de saúde, e a prescrição de medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde. Portanto, a menos que a ação movida pelo CFM contra disposições da Pnab obtenha, também, a revogação de dispositivos da Lei 7.498/1986 – que nenhuma decisão judicial até o momento declarou suspensa ou sem vigência –, as atividades desenvolvidas pelo enfermeiro no âmbito da atenção básica em saúde estão em estrita consonância com a legalidade.

Leia também:O valor da escolha na saúde (artigo de Pedro Beraldo, publicado em 15 de dezembro de 2009)

Para finalizar, registre-se que a Portaria GM/MS 2.488/2011, objeto da contenda judicial que estamos analisando, foi revogada pelo artigo 12 da Portaria GM/MS 2.436, assinada em 21 de setembro de 2017, ou seja, uma semana antes da divulgação da decisão da 20.ª Vara. Essa portaria recente, mais uma vez, reafirma ser atribuição do enfermeiro “realizar consulta de enfermagem, procedimentos, solicitar exames complementares, prescrever medicações conforme protocolos, diretrizes clínicas e terapêuticas, ou outras normativas técnicas estabelecidas pelo gestor federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal, observadas as disposições legais da profissão”.

Como bem disse a Sociedade Brasileira de Medicina de Saúde e Comunidade (SBMFC) em nota alertando sobre os prejuízos assistenciais resultantes da determinação que limita a atuação do enfermeiro na atenção básica, ao longo da história da construção do SUS o caminho da judicialização das profissões em saúde não tem sido proveitoso e, sempre, o maior prejudicado é o usuário. Acreditem: “Trabalhar junto faz bem à saúde”.

Telma Ribeiro Garcia, enfermeira, é coordenadora da Comissão Permanente de Sistematização da Prática de Enfermagem e ex-diretora da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn-Nacional), e diretora do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento da Cipe/CIE. Maria Goretti David Lopes, enfermeira, é assessora executiva do Coren/PR e ex-presidente da ABEn.
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