Parece que tivemos um pesadelo quando acordamos pela manhã, mas é real. A humanidade está em casa, o mundo praticamente parou. Dezenas de normas federais, estaduais e municipais são editadas em emergência, todos procurando fazer o melhor, numa situação absolutamente diferente, com poucos paralelos na história.
Nas relações de trabalho, tudo contaminado pela dúvida.
Se trabalhadores estão literalmente desesperados, pequenos e médios empresários de portas fechadas também estão: sem faturar, não sabem o que vai ser no futuro de curto prazo. Não há previsibilidade. Curvas de contágio no Brasil, Reino Unido, Estados Unidos, Japão, China, Holanda vão ditando o caminho da dúvida.
Se a situação é dura para os empregados, imagine-se para 10 milhões de desempregados e cerca de 38 milhões de “autônomos”, que tiveram seus rendimentos corroídos pela pandemia, e prioritariamente precisam comer e sustentar suas famílias.
A Medida Provisória 927 foi um tanto tardia e tímida, revelando-se frágil para atingir seu maior objetivo: a manutenção dos empregos. Ainda assim, não atinge os autônomos (que não possuem as proteções da lei trabalhista) e não abrange desempregados.
Com a Selic em 3,75% ao ano, a menor da história, deveria o país criar um plano emergencial de renda mínima para acalmar as famílias, atingir um contexto global (trabalhadores inclusive autônomos, pequenos e médios empresários e até desempregados), nem para que isso fosse necessário emitir moeda, dentro de um contexto previsto de aumento da inflação no curto prazo. Corrigir o rumo de um descompasso de política econômica artificialmente criado para a proteção das famílias será mais fácil que administrar o pânico e o rastro da miséria.
Isso sem falar que temos bilhões de reais parados em contas de FGTS, que poderiam ser utilizados para o socorro emergencial em detrimento de financiamentos de projetos habitacionais, o que igualmente poderia ser corrigido após vencermos a pandemia.
Garantida a renda mínima, como medida de previsibilidade e segurança alimentar das famílias, faz-se necessário criar um ambiente de segurança jurídica, no qual o Poder Judiciário deve ser protagonista.
Infelizmente, o que se viu foram interpretações prévias sem fim do texto da MP, algumas das críticas com cunho ideológico, colocando as medidas da norma emergencial em xeque, aniquilando qualquer noção de previsibilidade aos destinatários da norma: empregados e empregadores.
O raciocínio é muito simples: se a empresa faz um esforço para manter os empregos, e depois o Judiciário eventualmente invalidar os atos praticados e devidamente previstos na MP com interpretações variadas, nenhum empresário fará agora o menor esforço para preservar o vínculo de emprego. Simples assim. E geraríamos no curto prazo o maior desmonte de relações de trabalho já visto na história do Brasil.
Exemplo disso é o artigo 503 da CLT. É o único diploma legal que trata da possibilidade de redução salarial em casos de força maior, o que é indubitavelmente o caso no momento. A redução prevista ali é de até 25%. Se, 32 anos depois da promulgação da Constituição Federal, só agora criarem a teoria de que esse artigo foi não recepcionado ou até revogado (mas não há nenhuma lei que tenha previsto a revogação expressa), então seria melhor a dispensa do empregado em vez da redução salarial temporária? É muito fácil, popular e politicamente correto defender a impossibilidade de qualquer redução salarial. Mas, então, como fazer se os estabelecimentos estão fechados, sem faturamento, sendo que mais de 80% das empresas do Brasil têm até14 empregados?
Quando se fala em redução salarial do setor privado, imediatamente vem o questionamento: e o setor público? À toda evidência, o setor público também precisa fazer a sua parte. Seria até impensável que deputados, senadores, juízes e servidores públicos não aceitassem qualquer tipo de redução salarial temporária durante a crise, uma vez que o Estado também não está arrecadando. Em que pese nós, os juízes, termos carreira de dedicação exclusiva, diferentemente de deputados e senadores que podem e têm atividades paralelas, deve-se ponderar: necessário, sim, um grau razoável de redução como contribuição e alinhamento, pelo princípio da isonomia, da agonia pela qual passam empresários e trabalhadores no país. Não seria digno e nem sequer humano “defender o indefensável”, no sentido de que o país pode sucumbir, mas o setor público não aceitaria qualquer redução salarial.
Atendidos os critérios de preservação da saúde e da vida durante a calamidade (nem que isso leve mais algumas semanas, pois esse tempo no longo prazo não fará diferença), necessita-se um programa urgente de renda mínima garantida às famílias mesmo que isso desestabilize a política econômica e monetária por certo tempo com emissão de moeda e utilização do FGTS, além de dar algum grau de certeza nas relações de trabalho quanto às medidas adotadas com previsibilidade e segurança jurídica para preservação dos empregos(com sensibilidade do Judiciário na aplicação da MP e normas pertinentes).
Resta, por fim, nascer o protagonismo dos sindicatos. A Constituição Federal prevê que acordos feitos pelas empresas com sindicatos têm muito valor jurídico. Esses acordos poderiam prevenir conflitos, preservar os empregos, conferir a almejada segurança. Entretanto, posições rígidas de negociação dificultam a preservação do emprego. Tem-se notícias de inúmeros sindicatos que não aceitam qualquer redução nesse momento de força maior, o que vai gerar dispensas assim que as férias individuais ou coletivas concedidas se encerrarem, se não houver a descoberta de medicação ou vacina para a doença.
No momento, as medidas para preservação dos empregos que podem ser tomadas de pronto pelas empresas são: concessão de férias individuais ou coletivas mesmo sem período aquisitivo completo; adiantamento de feriados, o que dependerá da concordância do empregado somente nos casos de feriado religioso; e banco de horas especial por acordo individual, cujas horas poderão ser repostas até 18 meses depois do fim da calamidade pública. O principal conselho é refletir e não tomar decisões apressadas.
Depois virá o momento da retomada, para o qual também precisamos estar preparados. Como aprendemos que a vida merece pausas, fica a sugestão de reduzirmos a jornada de trabalho para seis horas, sem redução de salário. Aprendemos que tudo é passageiro, que não precisamos de tanta pressa, mas conviver mais e vermos seguramente mais pores do sol.
Nunca como agora tivemos o trabalho contaminado pela dúvida, pelo medo, pela insegurança, por um vírus. Não se pode deixar que o trabalho seja contaminado também pelo egoísmo, pela ideologia ou aproveitamento político do momento. Que depois desse pesadelo, fase que precisamos enfrentar com mais racionalidade e menos emoção, possamos viver o contágio, não só no trabalho, mas na vida de todos, de mais solidariedade, amor, gratidão, união e paz, enxergando a vida por novos ângulos.
Marlos Augusto Melek é professor de Direito, juiz do Trabalho no TRT-PR e foi membro da equipe de redação da reforma trabalhista de 2017.
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