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O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística constatou que metade das crianças e adolescentes em nosso país cumpre com afazeres domésticos, ajuda na produção para consumo familiar ou cuida de irmãos mais novos. Para o IBGE, essas atividades podem ser entendidas como trabalho infantil, porque entram em conflito com a educação formal.

É notório que a dedicação exclusiva de crianças e adolescentes ao serviço doméstico é descabida, e é evidente que não se pode delegar a eles toda a carga de responsabilidades que competem aos adultos. Nessa idade eles não estão plenamente maduros e treinados para cumprir com esses papéis. Mas a criança pode e deve contribuir com os afazeres domésticos, contanto que se tenha o cuidado de não comprometer outros aspectos importantes para o seu desenvolvimento.

Criança precisa de formação nos âmbitos físico, intelectual, socioafetivo, transcendente e volitivo. Por isso, além de contribuir com a família, é necessário que receba atenção de um adulto com o qual tenha vínculos de confiança e carinho, que tenha acesso a prática esportiva para que aprenda a dominar o próprio corpo, que aprenda a disciplina e a ordem para conquistar equilíbrio emocional, que brinque para harmonizar interiormente suas experiências de vida, que participe de atividades culturais, que tenha tempo para dedicar aos estudos. Porém, a participação nos trabalhos domésticos é fundamental para essa formação global do ser humano. Então, privar os jovens dos benefícios do serviço do lar é um modo de dificultar a educação em muitos de seus aspectos, inclusive no âmbito intelectual.

Jovens que não colaboram com a produção familiar estarão fragilizados diante das demandas futuras

Tal é a importância das tarefas de vida prática que nas escolas montessorianas espalhadas pelo mundo desenvolvido – e que em nosso país constituem uma alternativa educacional cara e elitizada – as crianças recebem tarefas domésticas desde tenra idade para serem cumpridas visando benefícios intelectuais. Trocando em miúdos: investe-se pedagogicamente em atividades de limpeza e cuidados com o ambiente para que os estudantes aprendam a cuidar de seu espaço, a cuidar de si mesmos e, com isso, a respeitar o seu entorno e seus pares. Na fundamentação pedagógica dessa linha educativa está a ideia de uma educação cósmica que é edificada por meio de atividades simples do cotidiano. Os frutos desse esforço educativo vão além da aquisição de competências técnicas. Usa-se de atividades pouco valorizadas em nossa sociedade, como varrer o chão, passar pano na mesa ou lavar vasilhas para desenvolver competências intelectuais que são fundamentais para a vida acadêmica – ordenar, encontrar padrões, catalogar, estimar, comparar. Além disso, nessas tarefas se dá a educação do caráter e a conquista de qualidades humanas como a autonomia, a responsabilidade e, em última análise, um aprendizado de cidadania.

É notório que em países como Estados Unidos e Japão, onde a terceirização dos trabalhos domésticos é um luxo, as crianças são ensinadas a contribuir com a limpeza desde pequenas, tanto em casa quanto nas escolas. Isso é visto com naturalidade por ser parte da educação. As famílias se organizam delegando tarefas para todos os filhos, e contando com eles nos pequenos serviços de assistência mútua a todos os membros da família e da comunidade. É comum que adolescentes cuidem não apenas dos irmãos, mas que atuem como babás para vizinhos. Essa contribuição, que é importante para a administração do lar, não impede o sucesso acadêmico desses jovens, quando bem dosada.

Leia também: Quem não dá valor ao trabalho não tem como dar certo (artigo de Bruno Dornelles, publicado em 12 de junho de 2017)

Luiz Felipe Pondé: O silêncio do caráter (1.º de maio de 2017)

Quando pensamos em educação, não podemos esquecer que ela deve atuar na integralidade da pessoa. Focar exclusivamente no aspecto acadêmico pode comprometer justamente o desenvolvimento acadêmico. Para a formação integral de um indivíduo visando o exercício pleno da cidadania, é preciso que ele esteja inserido em sua comunidade, aprendendo paulatinamente a administrar as demandas da vida adulta e conquistando maturidade e independência ao longo do processo educativo. Por isso, no ímpeto de melhorar a qualidade da educação em nosso país, corre-se o risco de piorá-la ao atribuir às tarefas domésticas o caráter de trabalho infantil. Visando melhorar o desempenho escolar de nossos jovens libertando-os de toda espécie de contribuição em casa, podemos formar pessoas despreparadas para a vida adulta. Portanto, as tarefas domésticas, quando bem dosadas, não podem ser desprezadas.

Jovens que não atuam na administração da casa, não cuidam de ninguém, não colaboram com a produção familiar estarão fragilizados diante das demandas futuras, e a sociedade receberá adultos infantilizados e dependentes de cuidados de terceiros. Precisamos de adultos capazes de cuidar de si e dos outros. Precisamos que nossos jovens conquistem a autoconfiança, fruto do exercício de suas competências como membros de uma comunidade com a qual precisam contribuir.

Lamentavelmente o serviço do lar é visto como degradante. Essa visão preconceituosa que se tem dos serviços domésticos em nossa cultura impede que a dignidade dos trabalhos de tantos jovens seja valorizada. Contribuir com o cuidado da casa, das pessoas da sua família, batalhar por bons resultados acadêmicos e aprender um ofício não são atividades excludentes, são todos aspectos importantes para uma vida equilibrada.

Manoela Martins é educadora, ilustradora e assistente editorial, estudou Pedagogia, Artes e Letras e é mãe homeschooler de seis filhos.
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