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Transmulheres, transhomens e transpensantes: algumas ponderações sobre trapaça e covardia
| Foto: Penn Athletics

Caro trapaceiro e covarde leitor (perdão, mas é isso mesmo), você tem sido honesto consigo a respeito de quem você é? Quero dizer, tem se trancado no escuro do seu quarto à noite, refletido sobre seus pensamentos, palavras e atos na busca de explicações para eles? Se tiver paciência, acredito que chegará ao fim deste texto convicto de que a única maneira de ser honesto e corajoso é admitir sua vida de trapaça e covardia.

As chamadas “ciências comportamentais” (campos da sociologia, antropologia social e cultural, psicologia e aspectos comportamentais da biologia, economia, geografia, direito, psiquiatria e ciência política) têm aumentado bastante sua visibilidade, aplicações e impactos nos últimos anos. Culminando nesse momento, chama-me a atenção todo o desenvolvimento de décadas de pesquisa de Daniel Kahneman e Amós Tversky, que adensou a “Teoria da racionalidade limitada”. Em termos muito gerais e breves, o que esses dois grandes pesquisadores da psicologia (o primeiro deles, laureado com o Nobel de Economia de 2002) descobriram foi: os seres humanos têm seus processos cognitivos influenciados por uma série de vieses particulares. Isso quer dizer: qualquer indivíduo, por melhor formado e reflexivo que seja, sempre pensa fortemente influenciado por suas crenças, preferências particulares, lembranças afetivas e outros.

Um dos achados dessa dupla que mais me impressiona é o “viés da confirmação”. Nosso cérebro tende a lembrar, pesquisar, interpretar e usar informações que confirmem o que já acreditamos. Pouco importa a mais brutal realidade, sempre teremos razão. Nesse processo, nosso cérebro é mestre em construir histórias coerentes para justificar nossas crenças.

O que isso tem a ver com trapaça e covardia? Explico. Em 27 de dezembro último, o historiador, escritor, comentarista e apresentador conservador americano Dennis Prager publicou um artigo no The Daily Signal (plataforma digital de notícias criada e mantida pelo think tank Heritage Foundation) sobre a nadadora universitária transgênero Lia Thomas, chamando-a de “trapaceira”. Esta Gazeta do Povo publicou tradução desse artigo e a caterva do politicamente correto saiu a clamar a “covardia” de Prager (para ler mais opiniões da Gazeta sobre transgêneros no esporte veja aqui, aqui e aqui).

Antes de seguir, vamos trocar dois dedos de prosa sobre as duas palavras. “Trapaça” em inglês é cheat. Pode ser verbo, tendo três significados: 1. como verbo transitivo: enganar alguém ou fazer alguém acreditar em algo que não é verdade; 2. verbo intransitivo: agir de maneira desonesta para obter vantagem (especialmente em jogos, competições e similares); e 3. intransitivo: trair conjugalmente. Pode ser ainda substantivo, também com três sentidos: 1. uma pessoa que trapaceia (especialmente em um jogo); 2. algo que parece ser injusto ou desonesto (por exemplo, uma maneira de fazer algo com menos esforço do que geralmente é necessário); e 3. uma espécie de truque em jogos de computação que permite ao jogador pular as etapas do jogo. “Covardia” é o medo ou a falta de coragem (é o oposto, portanto, de coragem, bravura).

Em seu texto, Prager afirma: “Lia Thomas é uma trapaceira”. Essa é sua conclusão, bem como parte do título. Para entender e refletir os argumentos a respeito, sugiro a leitura direta do texto, bem como os demais citados acima. O ponto aqui é outro. Esteja certo ou esteja errado, Dennis Prager é um covarde?

Coloquei-me a refletir sobre essa questão após ler a acusação feita pela caterva a Prager. O argumento dos boca-espumantes-do-amor-ao-próximo: ainda que ele esteja certo sobre a injustiça de homens biológicos disputando esportes em modalidades femininas, o correto é cobrar dos criadores das regras e não dos atletas. Isso seria tanto pior no caso dos transgêneros, uma vez que já são grupo discriminado. Lia Thomas apenas “aproveitou uma oportunidade de vida se submetendo às regras e exigências criadas por quem detém poder para tal”. Portanto, a covardia de Prager reside em se insurgir contra o (alegado pela caterva) “elo mais fraco”. Fosse corajoso, contestaria os formuladores das regras, os comitês esportivos (os “poderosos”). O texto de Prager apenas serve para aumentar o ódio contra pessoas transgênero, incrementar a transfobia.

A “lógica” é direta: se uma pessoa aproveita uma oportunidade dada pelas regras, leis existentes, ela não é trapaceira. Se as regras não são justas, deve-se cobrar dos seus formuladores, não dos indivíduos que “honestamente” aproveitam as oportunidades criadas pelas legislações e regramentos.

Seguindo essa “lógica”, o alemão, o francês, o polonês, o holandês humilde da primeira metade da década de 1940 que denunciava ao regime nazista judeus escondidos não deveria ser “julgado”. O soldado e o policial nazistas não deveriam ser cobrados. Afinal, em tais situações, temos apenas indivíduos aproveitando oportunidades de vida submetendo-se às regras e exigências criadas por quem detém poder para tal (Interessante: este foi justamente o principal argumento de defesa de Adolf Eichmann, administrador da escabrosa “solução final” nazista, em seu julgamento em Israel em 1961).

De maneira idêntica, não deveríamos condenar indivíduos pobres entregando negros escondidos, fugindo de cativeiros no sul dos Estados Unidos antes da Guerra Civil. Afinal, tais pessoas humildes estariam também aproveitando oportunidades de vida, as recompensas legais por entregar os fugitivos. Assim como estão aproveitando oportunidades de vida os homens que, sob regime islâmico radical e totalitário, denunciam mulheres estudando e trabalhando. Eles querem apenas reservar mercado para si (mesmo que sob pretexto religioso), amparados pela lei.

Seus covardes: acusar o cidadão, o soldado ou o policial nazista é incitar ódio contra alguém sobre quem já há tanto ódio; acusar o indivíduo que delata o negro escravo fugitivo é incitar ódio contra alguém sobre quem já há tanto ódio; acusar o homem radical islâmico que oprime as mulheres da sua nação é incitar ódio contra alguém sobre quem já há tanto ódio! Chego a ver membros da caterva colocando tais “humildes” no colo e ninando-os carinhosamente, como demonstram querer fazer com a pobre Lia Thomas.

Não restam dúvidas de que os “fazedores das regras” em todos esses casos são culpados. Mas são tão ou mais culpados os executores (aproveitadores) de tais regras. São culpados morais, trapaceiros morais. Retomando a definição de trapaceiro: alguém que age de maneira desonesta para obter vantagem, especialmente ao fazer alguém acreditar em algo que não é verdade e fazer algo com menos esforço do que geralmente é necessário; ou não é isso o que faz Lia Thomas?

No caso específico da polêmica sobre a nadadora, os que entendem que a questão é injusta, mas que a culpa não é da atleta e sim dos que definem e aplicam as regras, fico me perguntando: quem se inclina a produzir tais regras, e por que o faz? Seguindo na reflexão, deixo um pedido para o trapaceiro, covarde e caro leitor: se tiver alguma informação sobre um homem transgênero (biologicamente mulher) lutando para disputar esportes junto aos homens biológicos, por favor, me escreva indicando a fonte. Não, incauto boca-espumante-do-amor-ao-próximo, Lia Thomas não é o elo mais fraco nessa questão; o elo mais fraco são as mulheres atletas perdendo disputas contra homens. Vejam quem são os “indivíduos aproveitando as oportunidades legais” nos demais casos citados. O fato de algo ser uma lei não o torna justo; e, ainda que seja legal, pode ser imoral.

Não, incauto boca-espumante-do-amor-ao-próximo, Lia Thomas não é o elo mais fraco nessa questão; o elo mais fraco são as mulheres atletas perdendo disputas contra homens

Já há um tempo que indivíduos que se posicionam o mais levemente que seja contra pessoas ditas “oprimidas”, “minorias” (os quase sempre falaciosos “elos mais fracos”) são caçados, cancelados, demitidos (seria isso ódio?). Posicionar-se contra um (falso) “oprimido” como fez Prager não é covardia. É o oposto disso: trata-se da mais pura bravura. Só existem indivíduos criando as regras que permitem “Lias” disputarem esportes entre mulheres porque existem “Lias” pressionando por isso. O que, no fim das contas, acarreta as próprias “Lias” ou seus simpatizantes se tornando parte majoritária entre os membros que criam e aplicam as regras. O fato de você não enxergar isso é apenas a “limitação racional” humana atuando em você e fazendo o “viés da confirmação” (dentre outros) falar bastante alto. Será que você é tão “racional” e “justo” quanto pensa, caro leitor?

Marcos Pena Jr. é economista e escritor.

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