O denominado “inquérito das fake news” (Inq. 4.781/STF), instaurado pela Portaria GP 69, de 14 de março de 2019, mediante determinação do então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, está prestes a completar três anos de tramitação. O aniversário, porém, não deve ser motivo de comemoração. Com efeito, desde a formalização das investigações até o seu desenvolvimento, o que se vê no inquérito das fake news é um acúmulo de ilegalidades e a permanência de uma mentalidade processual penal autoritária e antidemocrática, da qual o Brasil não consegue se desvencilhar.
Em primeiro lugar, importa destacar que, em um sistema processual penal de índole acusatória, quem determina a instauração do inquérito policial e quem conduz as atividades investigativas não é – e não pode ser – o Poder Judiciário. Todos os sistemas processuais penais democráticos conhecidos no mundo possuem como característica a separação entre as funções de investigação, acusação, julgamento e defesa. A reunião de funções investigativas e de julgamento em uma mesma pessoa remonta à gênese do sistema inquisitório medieval, mormente aquele engendrado no seio da Igreja Católica e que, no ápice da perseguição aos “hereges”, instituiu formalmente, através da bula Ad Extirpanda (1252), de Inocêncio IV, a tortura como método de extração da verdade.
A exata compreensão histórica da incompatibilidade – inclusive psíquica, pois as funções são antitéticas – entre atividades de investigação e julgamento se reflete de forma cristalina em nosso texto constitucional, que atribui as investigações às polícias civil e federal (artigos 144, §1.º, I e § 4.º da Constituição), bem como ao órgão do Ministério Público, que na condição de titular do exercício da ação penal de iniciativa pública também possui poderes investigatórios próprios (artigo 129, IX da Constituição).
Não há, na Constituição, qualquer possibilidade normativa que autorize um juiz, desembargador ou ministro a conduzir investigações. Assim, os dispositivos previstos nos regimentos internos dos tribunais que porventura autorizem inquéritos judiciais – como é o caso do artigo 43 do RISTF – são inconstitucionais. Porém, foi exatamente isto o que ocorreu no inquérito das fake news, em que a determinação de abertura das investigações foi determinada pelo ministro Dias Toffoli e a condução das atividades investigativas foi conferida, pelo próprio presidente do STF, ao ministro Alexandre de Moraes. E, posteriormente, a constitucionalidade deste inquérito judicial foi referendada pelo pleno do STF, no julgamento da ADPF 572-MC, que declarou, por maioria de dez votos (vencido apenas o ministro Marco Aurélio, que chegou a afirmar se tratar, a hipótese, do “inquérito do fim do mundo”), a constitucionalidade da Portaria GP 69/2019 e do artigo 43 do RISTF.
Mas a violação à Constituição não decorre apenas da instauração do inquérito judicial. É que a portaria que inaugurou as investigações nem sequer determinou a atribuição da condução dos trabalhos por sorteio a algum dos ministros do STF. Não: o então presidente simplesmente escolheu a esmo um dos integrantes da suprema corte – no caso, o ministro Alexandre de Moraes – para o desenvolvimento dos trabalhos investigativos, violando o princípio constitucional do juiz natural (artigo 5º, XXXVII e LIII, da Constituição).
Em linhas gerais, pela garantia do juiz natural, veda-se que o controle de legalidade das investigações ou a presidência de um processo criminal sejam atribuídos a um determinado juiz mediante escolhas discricionárias ou subjetivas. A definição do órgão jurisdicional competente é determinada através de critérios legais prévios, certos, taxativos e prévios aos fatos investigados/processados, de modo a se garantir a impessoalidade na definição do juiz competente, reforçando-se a imparcialidade no exercício do poder jurisdicional. Mas no inquérito das fake news a definição do juiz condutor das investigações seguiu critério nenhum. A definição pelo ministro Alexandre de Moraes foi determinada a partir de uma escolha subjetiva do presidente do STF, sem que se saiba as razões que subjazem esta eleição.
O princípio do juiz natural foi ainda violado ao se conferir competência investigativa originária a fatos pelos quais os ministros do STF seriam vítimas. Com efeito, análise das regras constitucionais que contemplam a prerrogativa de função demonstra que o Inquérito Originário no STF somente se justifica para apurar casos em que o ministro do Supremo seja investigado como autor de uma infração penal comum (artigo 102, I, b, da Constituição), não havendo foro especial para crimes contra os integrantes do STF. Ou seja, eventuais condutas criminosas praticadas contra ministro do Supremo deveriam ser investigadas pelas instâncias ordinárias da Polícia Federal ou da Polícia Civil, a depender da hipótese concreta, mas não diretamente em inquérito perante o STF.
No campo do objeto das investigações, a situação de ilegalidade também é aferível. Sabendo-se que uma investigação criminal é algo extremamente grave e pode afetar o status dignitatis, a imagem, os bens e até a liberdade do investigado, não se admite que um inquérito se inicie sem que se tenha um mínimo de concretude fática, ou seja, que exista um fato ou conjunto de fatos aparentemente criminosos, delimitados no tempo-espaço, que se pretenda investigar. Ou seja, a investigação deve ser pautada por um mínimo de objetividade e delimitação fática, para que se não transmude em devassa geral, irrestrita e ilimitada na vida das pessoas.
No caso do inquérito das fake news, o que se viu em decisão do ministro Alexandre de Moraes, ao dar início às investigações, foi uma abertura semântica e conceitual dos “fatos investigados” que possibilita inserir qualquer coisa no campo investigativo. Ao iniciar o inquérito, definiram-se como fatos objeto de apuração 1. notícias fraudulentas, 2. falsas comunicações de crimes, 3. denunciações caluniosas, ameaças e demais crimes contra a honra contra ministros do Supremo; 4. vazamento de informações e documentos sigilosos; e 5. verificação da existência de esquemas de divulgação em massa nas redes sociais de notícias falsas ou com o intuito de lesar ou expor a perigo a independência do Poder Judiciário e o Estado de Direito.
No caso do inquérito das fake news, o que se viu em decisão do ministro Alexandre de Moraes, ao dar início às investigações, foi uma abertura semântica e conceitual dos “fatos investigados” que possibilita inserir qualquer coisa no campo investigativo
Não é necessário muito esforço argumentativo para se evidenciar que a definição dos fatos objeto da investigação não delimita nada. Tanto isso é verdadeiro que as investigações contemplam uma miríade de fatos, muitos deles sem nenhuma vinculação aparente entre si. Alguns deles foram inclusive especificados na decisão do ministro Gilmar Mendes, ao reconhecer a constitucionalidade das investigações, podendo-se citar: a) atentado realizado na frente da residência de ministro em 2020, mediante o arremesso de artefato explosivo; b) tentativa de agressão física a ministro em 2019, em São Paulo, mediante arremesso de objeto em via pública ao final de evento acadêmico; c) ameaça de morte a ministro e seus parentes em rede social; d) publicação em mídia social de advogada do Rio Grande do Sul, mediante aclamação ao público para que “estuprem e matem as filhas dos Ordinários Ministros do STF”.
Trata-se de fatos graves, que obviamente devem ser apurados nas esferas persecutórias com a devida atribuição legal, mas que nem sequer possuem algum vínculo de conexão ou continência entre si para serem apurados em um mesmo caderno investigativo, ainda mais diretamente por um ministro do STF. Inclusive, alocar em uma mesma investigação fatos episódicos e desvinculados praticados por pessoas distintas, em locais e circunstâncias distintas, nada contribui para a efetividade das investigações. E talvez mais grave seja manter, no âmbito da presidência do inquérito, um ministro que inclusive foi potencial vítima dos fatos investigados. Como se exigir imparcialidade judicial quando quem investiga também é vítima de alguns dos possíveis crimes?
A propósito, essa quebra do dever de imparcialidade se torna clara e evidente a partir de duas situações ocorridas no transcurso das investigações. A primeira delas consiste na determinação de diligências investigativas – muitas delas invasivas, como a determinação de buscas, apreensões e até mesmo a decretação de prisões cautelares – pelo ministro Alexandre de Moraes, sem qualquer requerimento formal da Procuradoria-Geral da República, órgão com atribuições investigativas nos Inquéritos Originários do STF. E a segunda consiste na manutenção do desenvolvimento do inquérito mesmo após requerimento formal de arquivamento formulado pela então procuradora-geral Raquel Dodge. Ora, se o próprio órgão encarregado pela eventual acusação entende pela inexistência de elementos suficientes para a formulação de uma acusação criminal a partir dos elementos apurados, não há nenhum sentido – lógico ou jurídico – em se manter a tramitação do inquérito. Ainda assim, após requerimento de arquivamento pelo titular da ação penal, o ministro Alexandre de Moraes indeferiu o pedido e até os dias atuais as investigações das fake news seguem abertas.
Em um sistema investigativo democrático, todos os fatos em tese criminosos devem ser apurados e devem receber a resposta estatal adequada, seja ela qual for. Contudo, o inquérito e processo penal devem seguir regras positivadas na Constituição e nas leis. As regras nada mais são do que formas de se conter o arbítrio do Estado, os subjetivismos e a expansão desmedida do poder. Ainda que se possa reconhecer a gravidade de alguns dos fatos apurados no inquérito das fake news, nada justifica o atropelo do sistema processual acusatório e democrático.
Bruno Milanez é advogado, mestre e doutor em Direito Processual Penal, e especialista em Criminologia.