Movido por pura curiosidade, resolvi averiguar quais autores mais li na vida, em termos de quantidade. O primeiro colocado foi Mario Vargas Llosa. Li 14 livros do prêmio Nobel de Literatura, romances e ensaios políticos. O tema deste artigo é seu mais recente livro, O chamado da tribo, em que resume as ideias de grandes pensadores como Adam Smith, Ortega y Gasset, Hayek, Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin e Revel.
Como o título já diz, o denominador comum que Vargas Llosa encontrou nesses autores é sua rejeição ao tribalismo, um chamado natural, uma vez que se trata de uma paixão atávica essa busca por pertencimento a um grupo coeso. O liberal luta contra o coletivismo tribal desde sempre, e não é trivial compreender as vantagens de um sistema mais impessoal como o livre mercado global, pois não é algo intuitivo.
Sou grande admirador de Vargas Llosa, não só do romancista, mas também do liberal em política. Mas vale ressaltar logo de cara as diferenças essenciais: enquanto ele adota uma visão de um liberalismo mais progressista e cosmopolita, às vezes quase flertando com uma social-democracia ao estilo tucano, eu me julgo cada vez mais um liberal com viés conservador, justamente por rejeitar a visão racionalista demais dos que ignoram o legado e a importância das tradições morais e religiosas, além do saudável patriotismo.
Vargas Llosa chega a forçar um pouco a barra para puxar para seu lado pensadores como Ortega y Gasset, que estaria certamente mais do lado conservador. Ele também despreza esse lado conservador nos costumes de estadistas como Reagan e Thatcher: “em muitas questões sociais e morais eles defendiam posições conservadores e até reacionárias – nenhum dos dois aceitaria o casamento homossexual, o aborto, a legalização das drogas ou a eutanásia, que me pareciam reformas legítimas e necessárias – e nisso, certamente, eu divergia deles”. Eu não.
Em que pesem diferenças importantes, o que nos une é mais forte: Vargas Llosa absorveu desses pensadores liberais a humildade necessária para não cair em tentações utópicas revolucionárias, preferindo sempre o gradualismo reformista e a democracia que, com todos os seus defeitos, tem como maior virtude evitar justamente o derramamento de sangue em trocas violentas de grupos no poder.
Sua aversão ao coletivismo é por mim compartilhada também. Com Sir Karl Popper, talvez sua maior influência, o escritor peruano rejeita a irracionalidade do ser humano primitivo “que descansa no fundo mais secreto de todos os civilizados, que nunca superaram totalmente a saudade daquele mundo tradicional – a tribo – em que o homem ainda era parte inseparável da coletividade, subordinado ao feiticeiro ou ao cacique todo-poderosos que tomavam todas as decisões por ele, e nela se sentia seguro, livre de responsabilidades, submetido, como o animal de manada, no rebanho, ou o ser humano em uma turma ou torcida, adormecido entre os que falavam a mesma língua, adoravam os mesmos deuses e praticavam os mesmos costumes, e odiando o outro, o diferente, que podia ser responsabilizado por todas as calamidades que assolavam a tribo”.
Nessa longa passagem, Vargas Llosa resume, talvez de forma um pouco caricata, o sentimento tribal coletivista, fonte do nacionalismo xenófobo, que ao lado do fanatismo religioso levou às maiores matanças na história da humanidade. A liberdade individual demanda responsabilidade, a começar por pensar por conta própria e assumir as rédeas da sua vida, o que assusta muita gente. A tribo fornece o conforto do coletivismo, em que o indivíduo pode se diluir em meio a uma massa monolítica, o que pode anular sucessos pessoais, mas anula junto os fracassos também. É tentador para muitos.
Acho, porém, que é preciso ter cuidado para não tomarmos os excessos como a norma, as exceções como a regra. Se o nacionalismo tribal dos nazistas é claramente terrível, isso não quer dizer que o patriotismo americano seja ruim, por exemplo. O risco do liberalismo individualista e cosmopolita é se transformar em algo que acaba rejeitando a importância do coletivo, da história comum de um povo, das tradições e, sim, do legado moral religioso, dos tabus. O racionalista quer submeter tudo à sua razão, mas isso parece uma tarefa fadada ao fracasso. E o fanatismo pode também ser de cunho político e ideológico, inclusive em nome da Razão, como o Terror jacobino mostrou.
Em Tribe: On Homecoming and Belonging, Sebastian Junger, correspondente de guerra, mostra como muitos militares acabaram sentindo falta dos anos de batalha, pois ali, apesar de toda a dor e violência, havia ao menos um sentimento forte de pertencimento a algo maior. Não por acaso virtudes – e também vícios – destacam-se em momentos como estes. A coragem que desperta em alguns, com um propósito de “bando”, é algo heroico e conhecido. Numa tribo, estamos dispostos a dividir mais, compartilhar, algo que as sociedades modernas impessoais dificultam – e o Estado é péssimo substituto para isso. Não quer dizer, naturalmente, que seja desejável retornar ao tribalismo. Mas é recomendável assumir que algo se perdeu no processo, que existe uma troca aqui, que o progresso civilizacional traz um custo.
Por fim, retorno à humildade, característica fundamental do liberalismo. Vargas Llosa resume bem: “Entre os liberais, como demonstram aqueles que figuram nestas páginas, com muita frequência há mais discrepâncias que coincidências. O liberalismo é uma doutrina que não tem respostas para tudo, como pretende o marxismo, e admite em seu seio a divergência e a crítica, a partir de um corpo pequeno, mas inequívoco, de convicções”.
De fato, Vargas Llosa é um liberal, e eu também me considero um. Ele tem inclinação progressista; eu, uma bem mais conservadora. Mas há uma elasticidade dentro do liberalismo que permite essas divergências, sempre de forma civilizada, dirimidas por meio do diálogo calcado em argumentos. Numa época de crescente polarização tribal, creio que o livro de Vargas Llosa tenha muito mais méritos do que deméritos, e mereça ser lido.
Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.