Vendo que o Poder Executivo não tem encontrado muitos obstáculos processuais e judiciais para a criação de órgãos destinados à fiscalização e controle da veiculação de informações, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) resolveu dar sua contribuição.
Aos que não se recordam disso, lembremo-nos de que no início do ano de 2023, o Decreto Federal 11.328, de 1º de janeiro de 2023, alterou a estrutura regimental da Advocacia-Geral da União para criar a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia – um pomposo nome para um órgão destinado a perseguir todo aquele que propagar o que a AGU entender como “desinformação” sobre políticas públicas.
Foi estabelecida, no inciso II do artigo 47 daquele dispositivo legal, como função da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia a representação da União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas.
Munido de imensurável conteúdo subjetivo, o conceito de “desinformação” pode ser entendido como toda e qualquer medida contrária a qualquer informação veiculada pelo governo federal por meio dos seus canais oficiais de comunicação, podendo tais informações serem verdadeiras ou não, bastando a procuradoria entender a informação contraposta como conteúdo desinformante. Na prática, escancara-se uma política pública institucionalizada de cerceamento da liberdade de expressão, de informação e abolição do debate público às políticas públicas destinadas à sociedade administrada.
Se não há lei em sentido estrito para definir o que é o ato ilegal de desinformação, não pode ficar ao critério do TSE definir isso.
Nessa mesma toada, no 12 de março de 2024, por meio da Portaria 180/2024, o Tribunal Superior Eleitoral criou o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE), que terá como função promover, durante o período eleitoral, a cooperação entre a Justiça Eleitoral, os órgãos públicos e as entidades privadas (em especial aquelas plataformas de redes sociais e serviços de mensageria privada), para fins de garantir o cumprimento da Resolução TSE 23.610/2019, que disciplina a propaganda eleitoral. A partir de então, mais uma vez, o Poder Judiciário por meio do TSE assume papel legiferante e, desconsiderando a existência do Poder Legislativo, extrapola os limites de sua função normativa estabelecida no parágrafo único do art. 1º e no inciso IX do art. 23, do Código Eleitoral, bem como o disposto no art. 105 da Lei Eleitoral 9.504/1997.
O curioso deste caso é que o dispositivo legal último estabelece que “o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos”. Assim, clara é a intenção do TSE em ignorar a hierarquia normativa e estabelecer, por meio de portaria (norma jurídica infralegal), a criação de um órgão que tem como função restringir a liberdade de expressão no âmbito eleitoral.
Cumpre destacar que no âmbito normativo, o inciso II do art. 5º da Constituição Federal de 1988 é claro ao estabelecer o princípio da reserva legal à matéria de criação, mitigação ou extinção de direitos. Saindo do juridiquês, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, entendendo-se o termo como lei em sentido estrito, ou seja, aquela tramitada e aprovada pelo Congresso Nacional, sancionada e publicada em Diário Oficial da União. Assim entendido, resoluções e portarias são consideradas atos administrativos normativos, que têm como função explicar ou especificar norma já contida em lei.
Se a Lei das Eleições (Lei 9.504/97) juntamente com o Código Eleitoral (Lei 4.737/65) em âmbito infraconstitucional são as normas máximas a serem explicadas pelas resoluções e pelas portarias, materialmente falando não pode o TSE editar portaria para disciplinar matéria não tratada naquelas leis. É que a Lei das Eleições estabelece em seu seus parágrafos primeiro e segundo do artigo 41, que o poder de polícia sobre a propaganda eleitoral será exercido pelos juízes eleitorais e pelos juízes designados pelos Tribunais Regionais Eleitorais e que o poder de polícia se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia sobre o teor dos programas a serem exibidos na televisão, no rádio ou na internet.
Fica claro que as leis que disciplinam o processo eleitoral estabelecem que o uso do poder de polícia é atribuído aos juízes eleitorais – quando estritamente utilizado às providências necessárias para inibir práticas ilegais. Não pode uma portaria criar um órgão para garantir o cumprimento das resoluções 23.610/2019 e 23.732/2024 e esquecer propositadamente que a Lei Eleitoral e o Código Eleitoral estabelecem a liberdade de expressão como regra, responsabilizando e criminalizando condutas atentatórias e prejudiciais não só à campanha eleitoral como aos candidatos, como vemos os exemplos dos arts. 324, 325, 326 e 326-A da Lei 4.737/65, que tratam dos crimes de calúnia, difamação, injúria e de denunciação caluniosa em âmbito eleitoral.
Da mesma forma, em nome da defesa da democracia e do combate à desinformação (ou, como preferiu chamar o ministro Ricardo Lewandowski, “desordem informacional”), não pode o TSE deixar em “conceito indefinido” o que o CIEDDE, as plataformas ou a ANATEL levará ao conhecimento do juiz eleitoral como sendo “desinformação”. Na prática, constitucionalmente, nem poderia o TSE definir tal conceito, sendo tal matéria de competência normativa do Poder Legislativo. E mesmo que pudesse, o conceito de “práticas ilegais” definidas no parágrafo segundo do art. 41 da Lei 9.504/97 pressuporia também matéria de reserva legal, onde só a lei em sentido estrito poderia definir o que é o ato ilegal a ser objeto de restrição pelo uso do poder de polícia do Estado, jamais podendo esse conceito a ser disciplinado ser um conceito vago e de critério puramente subjetivo. Ou seja: se não há lei em sentido estrito para definir o que é o ato ilegal de desinformação, não pode ficar ao critério do TSE definir, por meio de resolução ou de portaria, aquilo que deve ser excluído da propaganda eleitoral.
Nos preocupa – e na realidade deveria preocupar a todos aqueles que se dizem defensores do Estado Democrático de Direito – que o presidente da ANATEL expresse em sua fala expressões tão arbitrárias como quando disse que a “Anatel irá usar a plenitude de seu poder de polícia junto às empresas de comunicações para retirar do ar todos os sites e aplicativos que estejam atentando contra a democracia por meio da desinformação e do uso de inteligência artificial para deep fakes”. Como expressamente determinado pela Lei das Eleições, o poder de polícia no âmbito eleitoral compete ao juiz eleitoral, e não à ANATEL ou qualquer outro órgão criado pelo TSE com essa finalidade. Alias, quanto à ANATEL, esta não pode ignorar o Marco Civil da Internet (que estabelece a liberdade de expressão, de comunicação e de pensamento como princípios) e usar seu poder de polícia para retirar conteúdos da internet, mormente porque essa atitude deve ser precedida de ordem judicial a respeito, seja pela Lei das Eleições seja pela Lei 12.965/2014.
Haverá daqueles que dirão que a falta de definição legal para o conceito de “desinformação” não é preocupante, pois os casos de fake news urgem rapidez para serem retirados do ar, pois o prejuízo eleitoral é extenso. Neste ponto concordarmos com a necessidade de celeridade na apuração, mas não podemos tratar a exceção como regra. O conceito de “desinformação”, além de legalmente inexistente, abrirá portas a um vasto conteúdo que subjetivamente pode ser considerado como “ilegal”. No pleito eleitoral passado vimos uma ministra do TSE afirmar que “não se pode permitir a volta da censura”, mas resolveu abrir exceção – mesmo expressamente contrária à vedação de censura do parágrafo segundo do art. 41, da Lei das Eleições – para censurar a estreia do documentário Quem mandou matar Jair Bolsonaro?
Como vemos, desde pelo menos 2015 (onde me alcança a memória) – quando do caso de prisão preventiva do senador Delcídio do Amaral (expressamente proibida pelo artigo 53, §2º, da Constituição) – o “guardião” da Constituição vem empossando ministros que enxergam a exceção como regra, e tal conduta é flagrantemente incompatível com um Estado Democrático de Direito, que deve, pela sua lei constitutiva, assegurar a liberdade de seus indivíduos, sem deixar de resguardar o direito de todos aqueles que se sentirem prejudicados com eventuais abusos cometidos por outrem no extrapolar do exercício de seus direitos, devendo o Estado garantir objetividade, celeridade e eficiência não só na prestação do exercício jurisdicional, mas no efetivo cumprimento da Constituição e do ordenamento jurídico como um todo.
Aécio Flávio Palmeira Fernandes é advogado especialista em Direito Constitucional.
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