Meu cachorro River dorme comigo quase toda noite. É um boiadeiro australiano, com o pelo todo salpicado, o que lhe dá uma tonalidade marrom-avermelhada, quase cor de bronze. Antes de eu adormecer, ele pula no edredom e se enrola, parecendo uma meia-lua peluda ao meu lado, apoiando o focinho cor de ferrugem no meu peito e se encaixando em algum lugar entre meu braço e o coração.
Quando descansa assim ao meu lado, sinto meus batimentos diminuírem levemente e uma sensação de conforto me nocauteia, acalmando meu cérebro febril. Nos dois anos em que moramos nessa rua barulhenta no Brooklyn, os sons da cidade lá fora parecem até se suavizar. Sua presença me conforta mais que a lenta euforia da hidrocodona ou o blecaute estonteante de muitos e muitos uísques com soda – sentimentos que conhecia bem antes de ficar sóbrio e receber esse cachorro na minha vida.
O efeito calmante é inegável e tangível, como a sensação que se tem andando descalço sobre a grama recém-cortada. Achei que pudesse ser coisa da minha cabeça, portanto fui pesquisar: de acordo com a Psychology Today, deitar-se ao lado da respiração ritmada de um cão pode ajudar a embalar o sono e aumenta o nível de ocitocina, o hormônio associado ao carinho e à felicidade. Por experiência própria, acredito que as duas coisas sejam verdadeiras.
Adotei River quando completei seis meses de sobriedade e ainda frequentava as reuniões dos Alcoólicos Anônimos de vez em quando. O programa, cheio tanto de gente boa como de personalidades excessivas, não era para mim. Achei que, em alguns aspectos, me foi até útil, mas nunca me conquistou de verdade. Ir aos encontros do AA e ler o “Big Book” é o mesmo que aprender um novo vocabulário, cheio de slogans clichês e temas religiosos codificados. Além disso, fico ansioso perto de gente nova e grupos grandes; era complicado para mim conseguir um patrocinador ou círculo de apoio fora das reuniões semanais.
Pertencer ao AA é admitir uma noção de singularidade – todo mundo é igual e o vício de todos também
Eu gostava do companheirismo, ainda que me incomodassem as implicações autoritárias do programa. Pertencer ao AA é admitir uma noção de singularidade – todo mundo é igual e o vício de todos também –, aceitar um poder superior e seguir cada um dos doze passos com precisão. Com dificuldades para aceitar esses aspectos do processo, me descobri querendo encontrar outro caminho para a sobriedade, menos cheio de regras, mais pessoal – e encontrei tudo isso em River.
Ele está com mais de três anos, e já o tenho há 2,5 anos, o que significa que mais de 80% de seu tempo de vida foi ao meu lado. Vivi a maior parte dos meus 31 anos sem ele, mas o sinto inseparável da minha psique. Tenho até medo do meu apego, da mesma forma que receio pensar que minha sobriedade depende dele.
Não sei os detalhes exatos de sua vida antes de mim, a não ser que foi entregue, ainda filhote, ao Abrigo Animal do Condado de Gordon, no estado da Geórgia, e chegou à Nova York graças a uma organização chamada In Our Hands Rescue. Tampouco as pessoas com quem conversei no dia da adoção pareciam saber muita coisa. A cópia que tenho do formulário de registro no abrigo diz que chegou ali por ser “indesejado”, nota que aparece ao lado de sua foto, onde dá para ver direitinho seus olhos tímidos e meigos e o sorrisão, língua para fora, parecendo aqueles cães de desenho olhando gulosos para um ossão ridiculamente grande. Como é possível alguém não o querer?
Apesar da foto sorridente, não acho que River tenha tido uma vida bacana no interior da Geórgia. Ele fica apreensivo perto de quem não conhece, irrequieto perto de barulho e de movimento e inseguro em relação às coisas que um cachorro nem devia questionar, o que dificulta a vida em uma das cidades mais movimentadas do mundo. Moro em Nova York há nove anos e, no entanto, aos poucos comecei a me ver ressentido de minha cidade e de meu bairro: os skates batendo na calçada e os barulhentos que andam neles; os carros de janela aberta e música alta; as ambulâncias e sirenes; a garotada malcriada que berra e corre, passando a milímetros dele. Todas essas coisas assustam River e passei a detestá-las.
Por essas razões, acho que minha ligação com meu cachorro ansioso se aprofundou mais depressa. Quero protegê-lo de tudo que o deixa desconfortável, de uma forma intensa que não reservo nem a mim. Sou condescendente demais com seu mau comportamento – e, no entanto, não sei se estaria sóbrio há dois anos sem sua presença em minha vida. Parte da energia e do amor que dou a esse cão poderia ser investida em mim mesmo, mas aprendi que não se controla o amor incondicional.
Leia também: O problema do cachorro francês do homem cego (artigo de Adam Linn, publicado em 21 de outubro de 2018)
Ao longo dos anos, tentei muita coisa para diminuir a bebida ou parar de beber: teve a fase dos livros de autoajuda e exercícios rigorosos, a da meditação bem cedinho e dos bastões de palo santo, a da obsessão com as plantas de casa e da redecoração do apartamento. Entretanto, foi a relação com meu boiadeiro australiano que provou ser a mais eficiente.
Parar de beber me deixou inquieto, e um cão de pastoreio jovem que exige muita atenção provou ser remédio como nenhum outro (ver um terapeuta também ajudou). Subconscientemente, River assumiu um novo papel na minha vida quando fiquei sóbrio: passou a me dar a estrutura que havia tempos eu não conseguia me proporcionar; estabeleceu a rotina na minha vida e me forçou a estar presente quando o que eu só queria era flutuar no espaço. Depende dos meus cuidados e não quero decepcioná-lo. Nas nossas caminhadas de início da manhã e começo de noite, o ar fresco parece limpar meus pulmões. A sensação é tão boa, ou melhor, do que a que me invadia sentado nas cadeiras dobráveis daquelas reuniões.
Meu cachorro fez por merecer seu espaço na minha cama e cada centelha de energia que lhe dou. Ele me mostrou que é possível encontrar um caminho para a sobriedade fora do AA e longe do “Big Book”. A razão do meu vício, acredito eu, era a sensação perene de ser um peixe fora d'água – ou seja, ninguém me entendia ou me via, eu era inadequado ou insignificante. Nos dias mais difíceis, ele me oferece um conforto inigualável e um amor sem hesitação ou limite. Tem noite em que fico deitado, pensando nas coisas que a bebida me proporcionava e de que sinto falta, permitindo-me admitir a perda indescritível que um alcoólatra sente ao desistir da bebida. Entretanto, quando esses pensamentos agitam minha mente por demais, sinto River dormindo ali ao meu lado, e fico feliz por saber que não estou mais sozinho.
Tyler Watamanuk é produtor e jornalista.
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