Na proximidade do 2/10, dia em que o Opus Dei comemora 82 anos, ao pensar num texto para celebrar a data, veio-me à memória um samba de Chico Buarque de Holanda: "Todo dia ela faz tudo sempre igual/ me sacode às 6 horas da manhã/ me sorri um sorriso pontual/ e me beija com a boca de hortelã". Pode chocar que um texto de celebração de uma instituição da Igreja Católica venha acoplado a um samba tão crítico, irônico, desacorçoado. Afinal o "Cotidiano" é veemente protesto contra a rotina, a falta de tudo, um protesto contra mortos-vivos. E seria injusto julgar que a rotina está na mulher que "beija ora com a boca de hortelã ora de café", porque também está no homem, que não luta contra essa rotina, mas pensa "na vida pra levar" e se cala "com a boca de feijão". É a toada da "vidinha", da mediocridade que fez o Drummond exclamar: "Eta vida besta!".
Não foi, porém, apenas o samba do Chico que irrompeu na memória. Vieram, na sequência, estes versos do heterônimo Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa: "O meu olhar é nítido como um girassol./ Tenho o costume de andar pelas estradas/ Olhando para a direita e para a esquerda,/ E de vez em quando olhando para trás.../ E o que vejo a cada momento/ É aquilo que nunca antes eu tinha visto/(...) Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do Mundo...". O heterônimo fala de um saber olhar que faz ver novas todas as coisas, de um ver em sua singularidade as coisas que compõem o dia a dia da vida de todos nós. Mas há mais.
A pergunta que agora se apresenta é: mas o que os 82 anos do Opus Dei têm a ver com tudo isso? E a resposta é: têm tudo a ver. Porque o Opus Dei Obra de Deus irrompe no mundo com a missão de lembrar que Deus nos espera na esquina de cada momento, de cada circunstância concreta de nosso dia, para que com Ele con-vivamos, co-laboremos na obra da Criação de um mundo que se constrói também com nosso agir. Para fazermos isso é preciso ter olhos de ver. Se a dona de casa, imbuída desse espírito, ao dar início ao dia às 6 horas da manhã, estiver consciente de que com seu trabalho ela está tomando parte na criação, se, possuída pelo sentido dessa parceria, ao desincumbir-se de suas ações, quer seja lavar roupa ou guiar seu carro, já não "sacudirá" marido ou filhos com aquele "sorriso pontual", mas os despertará com amor. A cada dia sua ação terá um sentido infinito, sua vida irá ganhando contornos de uma aventura que, apesar de oculta, participa da transcendência divina. "(...) há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir", diz São Josemaría Escrivá, o Fundador do Opus Dei. Pode descobri-lo o agricultor, que desenvolve seus dons no trabalho da terra, o professor, na sala de aula, às voltas com a matéria a tornar atraente, e tarefa difícil com o relacionamento com os alunos, o engenheiro genético em suas pesquisas, o encarregado da varrição das ruas, ao tornar a cidade habitável. Com clareza meridiana, São Josemaría formula sua mensagem não a uma elite, mas a todos: "Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar o Senhor na nossa vida de todos os dias, ou não O encontraremos nunca". E, desde os idos anos da década de 30, dizia que, com o surgimento da Obra, tinham-se aberto os caminhos divinos da terra. Estão.
Finalizo lembrando outro samba, cujo autor ignoro: "O mundo é mau/O mundo é ruim (bis)/ Assim diz essa gente que não sabe o que é viver/Assim diz essa gente que não sabe o que é sofrer./ O mundo não é mau não é ruim, não!/A gente é que faz o mundo assim!" Há sabedoria nessa canção. Curiosamente, ela coincide com palavras do Fundador numa homilia que já citei mais vezes neste texto: "(...) o mundo não é ruim, porque saiu das mãos de Deus, porque é criatura dEle, porque Javé olhou para ele e viu que era bom. Nós, os homens, é que o fazemos ruim e feio, com os nossos pecados e as nossas infidelidades."
É tarefa dos que no mundo estamos metidos a luta por torná-lo melhor, isto é, mais de Cristo, mais santo. Se somos chamados para colaborar na criação do mundo através de nosso trabalho santificado e de nossa vida, também somos chamados a colaborar na sua redenção através desse mesmo trabalho santificado e do que fazemos de nossa vida. Em nossas mãos está que ela nem mesmo pareça "sempre igual". Em nossas mãos está contribuir para que o mundo seja menos mau e menos ruim. Não é pouco.
Mª Helena Nery Garcez é doutora em Literatura Portuguesa pela FFLCHUSP.