O problema não está nas iniciativas sadias que são facilitadas pelas redes sociais e sim no potencial dessas últimas serem utilizadas para fins malignos

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Na semana passada, 20 mil pessoas, "convocadas" pelas redes sociais e pela internet, fizeram na Praça da Espanha, o tal Réveillon Fora de Época. A festa foi anárquica, no sentido exato do termo, ou seja, sem um governo, uma coordenação responsável e assim transformou-se num grande happening regado a bebedeiras, jardins pisoteados e opiniões divididas: de um lado, os que invocam a Constituição para defender a liberdade ilimitada de reunião e veem a espontaneidade da festa como um sinal favorável de mudança nos curitibanos, tidos e havidos como retraídos e insociáveis; de outro aqueles que se assustaram com a facilidade com que alguém convoca uma multidão para se reunir em algum lugar para fazer algo vagamente definido como "divertir-se", "confraternizar" e "viver um momento de alegria".

A tal festa representa bem a capacidade de mobilização popular desse novo fenômeno social que se chama de "redes sociais" e até aí nada demais. Porém, o problema está exatamente no caráter anárquico (de novo, no sentido sociopolítico do termo) dessas mobilizações. A internet é anárquica por natureza, pois foi criada para ser exatamente assim: no seu nascedouro, foi concebida como um instrumento de comunicação militar, a Arpanet. Criada em plena Guerra Fria e no clima de histeria das guerras nucleares, a Arpanet seria uma rede capaz de continuar a conectar os centros de decisão norte-americanos, mesmo se um ataque nuclear inutilizasse os sistemas convencionais de coordenação e de informação militares e governamentais. Para isso, cada parte da Arpanet deveria ser capaz de conectar-se a outras sem depender de uma coordenação central. Esse é o embrião e o DNA da internet.

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No entanto, embora muitos vejam nessa anarquia a demonstração mais cabal da liberdade individual e reajam a quaisquer ideias contrárias a essa liberdade ilimitada, sempre rotuladas como atos de censura, essa falta absoluta de limites é realmente assustadora. É necessário não confundir tentativas reais de cerceamento da internet como as que estão acontecendo na China e no Irã, com a preocupação de vozes mais moderadas com a facilidade com que se criam e reproduzem fenômenos sociais a partir da internet atualmente. Sempre que se discute este assunto, os defensores da transformação da anarquia cibernética em anarquia social lembram exemplos edificantes e piedosos de como essa liberdade pode ser utilizada: a campanha da Ficha Limpa, a Primavera Árabe no Egito e na Tunísia, a campanha eleitoral de Barack Obama. O problema não está nas iniciativas sadias que são facilitadas pelas redes sociais e sim no potencial dessas últimas serem utilizadas para fins malignos. Uma difamação veiculada pela internet é uma sentença irrecorrível de condenação para o difamado; uma convocação para fazer algo perigoso, ilegal ou que ameace as instituições pode prosperar pandemicamente sem que ninguém possa barrá-la. Já estamos tendo uma minúscula amostra do potencial de criminalização da internet com os chamados cybercrimes, em que senhas bancárias são clonadas e roubadas, computadores são infectados por vírus, e fraudes com cartões de crédito proliferam como cogumelos.

Não é porque o mundo está tecnologicamente mais desenvolvido que a essência do ser humano se purificou. Para que as pessoas vivam juntas harmonicamente, as sociedades modernas criam instituições: os governos para administrar o Estado, a polícia para evitar a violência arbitrária, o esbulho, a desobediência à ordem e à lei; a justiça, para reparar malfeitos e corrigir disparidades de poder; as leis, para garantir a todos o acesso aos direitos individuais , mas também, para impor limites a esses para possibilitar o bem-estar coletivo; e os legislativos para criar essas leis. Essas instituições começam a ser seriamente ameaçadas pela facilidade com que seus poderes e prerrogativas são desafiados.

Uma multidão agindo sem nenhum controle social ou limite é turba. E uma turba não é menos perigosa porque é cibernética.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUC PR.