Na perspectiva infalível do tempo, é possível afirmar que uma das mais importantes publicações acerca do absurdo das guerras foi a peça teatral A guerra de Troia não acontecerá, de Jean Giraudoux, de 1935. Tratava-se de alegoria burlesca, sobre gregos e troianos, mas, de fato, com fina ironia, um veemente alerta sobre a insanidade que levou a Europa ao maior conflito da humanidade, sem que forças da razão pudessem fazer-se ouvir.
Embora reconhecido berço de cultura comum, a fronteira russo-ucraniana é hoje destinatária de olhares temerosos do mundo, na expectativa da eclosão de imponderável conflito. Como país distinto na erosão da ex-União Soviética, não obstante o heroico percurso de seu povo, desde as guerras napoleônicas à Segunda Guerra Mundial e à Guerra Fria, sobrevivente de invasões, ocupações e deportações, a Ucrânia ainda busca definições essenciais em seu sentir nacional. Vítima de escolhas econômicas e de governos desastrados, o país segue a destilar infortúnios de dependência imputados ao vizinho poderoso, a quem entregou inclusive seu arsenal nuclear.
Com visões de mundo inconciliáveis, entre ódio e amor a russos, a população divide-se em valores e ideais, como na sombria e guerreira Donetsk, disposta a todos os sacrifícios pela grandeza com Moscou, em oposição à colorida e ensolarada Lviv, hedonista e obcecada de ocidente, de consumismos e modernidades. O dilema se agrava na atual crise, com a tentação de independência açulada com a proposta de adesão à Otan, com apoio aberto dos Estados Unidos e União Europeia. Kiev, capital do país, é síntese desses desencontros medulares, a refletir a Ucrânia dividida e à porta da guerra, grande para ser apenas Estado-tampão, mas ínfima para enfrentar o vizinho poderoso. Quanto à Rússia, os mapas falam: sem a Ucrânia é país, com a Ucrânia é império.
Por ora a gesticulação belicista de Moscou nas fronteiras do vizinho rebelde, com mobilização maciça de tropas, lembra apenas a paz armada do período entreguerras. Quem haverá de dar o primeiro tiro?
Sem o pessimismo de cassandras e a bastar a lucidez dos fatos, a iminente intervenção russa que se gesta pode incluir todos os elementos da tempestade perfeita. Convolve a China, com seu trauma de províncias rebeldes e de Taiwan, a Otan e a Casa Branca, sem poupar a União Europeia e tantos terceiros interessados, como Índia e Japão. Imbróglio peculiar, por certo, a lancetar vários dilemas, desembalando cristais e pondo em linha de colisão todos os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Nesse roldão, emerge a fragilidade da União Europeia, gigante em economia, mas limitada em política externa, máxime na defesa de seus interesses, dividida e vulnerável. Um paradoxo. Afinal, o Tratado de Roma teria sido viga mestra para a Europa coesa, por seus valores e bem-estar, a dissuadir a Terceira Guerra Mundial.
Já disparado o alarme internacional que clama por contenção e por distensão diplomáticas, a engajar grandes chancelarias do mundo, por ora a gesticulação belicista de Moscou nas fronteiras do vizinho rebelde, com mobilização maciça de tropas, lembra apenas a paz armada do período entreguerras. Quem haverá de dar o primeiro tiro? Também a certeza da imediata imposição de sanções econômicas à Rússia faz com que possa haver algum alento à negociação. Afinal, a Europa é a única grande e possível cliente do tão necessário gás dos Bálcãs, a commodity essencial ao comércio internacional de Moscou.
Há ainda o fator militar a considerar. Na dificuldade de emprego de forças terrestres em terreno distante e inóspito como o das estepes ucranianas – já assim sabidas desde Napoleão –, estrategas têm aconselhado apenas apoio logístico a Kiev, de armas e equipamentos bélicos, além de treinamento militar, sem envio de tropas: a guerra por outros meios, por assim dizer.
Como ultima ratio, resta esperar que ainda haja espaço para políticas de apaziguamento, na certeza de serem as guerras no momento já caótico que o mundo atravessa a mais disruptiva das opções. Também, os riscos de escalada nuclear incontrolável impõem redobrada cautela. Bem a propósito, em havendo o conflito, o confronto nuclear entre superpotências é hipótese não negligenciável, como bem lembra o almirante norte-americano James Stavridis, veterano de conflitos e ex-comandante das forças da Otan: “se belonaves de superpotências engajarem-se em combate nesta parte do mundo, a tentação nuclear será imensa”.
Se decerto a história se repete como farsa, a incontrolável escalada da crise pan-eslava pode agora conferir infeliz e lamentável atualidade ao escritor francês Jean Giroudoux: A guerra de Troia não acontecerá.
Jorge Fontoura, doutor em Direito Internacional, é professor e advogado.