Ao ler recente coluna de José Paulo Cavalcanti Filho, na revista Será?, lembrei que toda nação requer um Panteão onde lembrar personagens e heróis. Estátuas são parte desses panteões. Mas, de vez em quando, descobre-se pecados dos heróis e surgem movimentos para retirar seus nomes e estátuas do Panteão. Ultimamente, surgiram movimentos contra personagens que deram contribuições positivas ao mundo, mas patrocinaram escravidão e racismo.
José Paulo alerta para os riscos desses gestos bem intencionados: ao se derrubar estátuas de escravocratas, derruba-se parte da história da escravidão. Melhor do que pôr ao chão estátuas seria escrever os crimes no pedestal - escravocrata, torturador, explorador, colonialista. Com isso, não se prestaria a homenagem do esquecimento a um escravocrata.
Se criarmos estátuas apenas de personagens perfeitos, raros papas estariam ainda firmes em pedestais, raros filósofos resistiriam ao escrutínio de hoje, provavelmente nenhum general ou político. Porque o valor das lembranças é medido pelo que pensam as gerações no presente. Além disso, essas estátuas não são apenas história e homenagem, são também obras de arte, e com valor e transcendência estética que merecem respeito.
No Brasil, até o século XIX, quase todos que não eram escravos tinham escravos e prédios de faculdades eram construídos por escravos. Até hoje, são erguidos por operários com mínimos salários, e raros de seus filhos estudarão nelas. Algum brasileiro de hoje mereceria uma estátua, no futuro, quando forem lembrados os privilégios usufruídos por ele, diante das relações sociais perversas ao redor, graças à concentração de renda?
O casamento da lembrança histórica com os valores morais do presente fizeram Ruy Barbosa cometer crime contra a história, ao queimar documentos da escravidão, apagando nomes de escravos e seus donos, com o propósito de expor a “virtude a favor do futuro”, impedindo que descendentes dos donos, pedissem indenização ao Estado brasileiro.
Verdade, história e estética devem ser a base para justificar a permanência da homenagem e seu papel pedagógico e formar a memória completa dos povos com os erros e acertos de seus heróis. No lugar de derrubar estátuas, melhor criar uma ala para manter os nomes e as caras dos escravocratas, dos racistas, dos colonialistas. Nessa ala, os visitantes poderiam vaiar e cuspir nos malditos.
Teríamos dois panteões, uma ala para os bons e outra para os maus. Uma espécie de Divina Comédia da História, onde teríamos duas alas: a dos heróis e a dos malditos e dependeríamos do humor da dona história que, de tempos em tempos, mandaria mudar o endereço da estátua - embora tenhamos o direito de desejar que racistas e escravocratas enferrujem no Anti Panteão.
Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília.