Pedestal vazio em Ternopil, Ucrânia. É uma das muitas estátuas do poeta Púchkin, do século XIX, retiradas na desrussificação.| Foto: Микола Василечко/Wikicommons
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Há não muito tempo, a morte de Vladimir Ulyanov, “Lenin”, completou cem anos. Como de costume, as redes sociais no Brasil foram marcadas por uma “disputa” sobre a memória do líder da Revolução Russa. De um lado, brasileiros de orientação à esquerda emocionados com a data e furiosos com as “frias” homenagens oficiais em Moscou; de outro, conservadores brasileiros, simpáticos ou não à Rússia de Putin, igualmente histéricos com o fato de que os russos ainda lembram e respeitam o nome de Lenin.

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Sempre me pareceu bastante curiosa a tentativa extemporânea e até mesmo necrófaga de se ler personagens políticos do passado com olhares contemporâneos. No caso de Lenin, tais tentativas são particularmente intensas atualmente, dado o grau de atenção sobre a Rússia na opinião pública. Contudo, gostaria aqui de chamar atenção para este fenômeno para além da figura do líder comunista, focando no todo do passado soviético da Rússia.

Recentemente estive em visita à região de Donbass, onde tive a oportunidade de trabalhar como correspondente na zona de conflito. Por lá, abundam em todos os lugares símbolos soviéticos, desde simples bandeiras até monumentos históricos. A memória do comunismo parece bastante viva no Donbass – muito mais do que no território pacífico da Federação Russa, onde a modernização avança a passos largos e o espaço dedicado à memória das décadas recentes se torna cada vez menor.

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No Donbass, é definitivamente comum ver a foice, o martelo e a Cruz de oito pontas ortodoxa dividindo o mesmo espaço – isso para não falar nas bandeiras soviética e imperial lado a lado

Durante minha passagem por aquela região, não pude deixar de notar a coexistência estranhamente harmoniosa – para um ocidental – de símbolos soviéticos e cristãos. Tanto nas gravuras de prédios civis como nas fardas e bandeiras dos soldados das milícias locais que transitam entre seus lares e as linhas de frente. No Donbass, é definitivamente comum ver a foice, o martelo e a Cruz de oito pontas ortodoxa dividindo o mesmo espaço – isso para não falar nas bandeiras soviética e imperial lado a lado.

Tive na ocasião a oportunidade de conversar com diversos moradores locais, desde pessoas simples e soldados até políticos e funcionários do governo. Sempre que nossos diálogos tocavam no tema da aparente “união” entre cristianismo e socialismo, minhas indagações eram recebidas com uma espécie de estranheza que impedia qualquer tipo de resposta complexa.

Para aquele povo, este assunto simplesmente não parece ser uma “questão”. Para eles, tudo soa como a realidade dada, a natureza das coisas em sua perfeita harmonia. Não há uma contradição para um russo do Donbass em comemorar o dia da Revolução Bolchevique e venerar um ícone ortodoxo de Nicolau II. Não há contradição entre ser um cristão ortodoxo e honrar os símbolos da ideologia que perseguiu esta mesma fé. É como se o tempo tivesse soterrado qualquer atrito entre ambas as práticas.

Apenas conversando com alguém “iniciado” no modo de pensar brasileiro, pude adquirir uma perspectiva mais ampla acerca do tema. Andrey, meu tradutor e grande amigo pessoal – que conheci, não no Donbass, mas no Brasil muito tempo antes de minha viagem –, fez questão de detalhar em forma didática uma explicação sobre o tema. Mas foi em uma única frase que todas aquelas ideias me pareceram claras: “para nós, odiar o comunismo seria como cancelar o passado”, disse ele, apagando de uma vez por todas quaisquer dúvidas que ainda restavam em minha mente.

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No mesmo momento, me recordei do fenômeno, infelizmente cada vez mais comum no Brasil, da depredação de monumentos históricos com base no “revisionismo woke” – tão comumente esposado pela esquerda e corretamente criticado pelos setores mais conservadores no Ocidente. Conversando com Andrey, percebi que esta aplicação da cultura do cancelamento ao passado, com julgamento de figuras históricas baseado em visões contemporâneas, também se aplicou na Ucrânia, mas, ao contrário daqui, a partir da direita.

É bom lembrar que, da mesma forma que “os avós” dos russos de hoje morreram lutando pelo comunismo, os “seus bisavós” morreram nas perseguições religiosas e nos programas brutais de perseguição da União Soviética

Desde o Euromaidan, em 2014, a “desrussificação” da Ucrânia é uma prioridade para Kiev. O banimento da Lei de Línguas Cooficiais e as políticas de hostilidade militar no Donbass são exemplos claros de como uma verdadeira paranoia anti-russa foi instaurada em Kiev como ideologia de Estado. Um dos resultados imediatos disso foi justamente o “cancelamento” do passado soviético. Monumentos derrubados, ruas e cidades renomeadas e toda forma de apagamento da memória soviética se tornaram práticas corriqueiras na Ucrânia dos últimos dez anos. Aliás, não só na Ucrânia, mas também em outros países ex-comunistas do Leste Europeu, como Polônia e os Bálticos.

O resultado de tudo isso foi o crescimento de um ultranacionalismo exacerbado e o fomento aos sentimentos de ódio étnico que culminaram na crise atual. Putin fala em “desnazificar” a Ucrânia e a imprensa ocidental o acusa de estar mentindo, mas foi o próprio governo ucraniano que, em 2014, sob a bandeira da “descomunização”, tomou o perigoso passo de incorporar nas tropas do Ministério do Interior milícias neonazistas como o Regimento Azov, Pravyi Sektor e outras.

Na prática, é possível dizer que o ódio irracional ao passado levou a Ucrânia ao extremismo e à guerra, com todas as desastrosas consequências de ambos os fenômenos. Em nome de um revisionismo reacionário – mas nem por isso menos “lacrador” –, Kiev chegou ao absurdo da normalização do racismo anti-russo, o que não poderia ter outro resultado senão o separatismo nas regiões de maioria étnica russa.

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Obviamente, não quero dizer com nada disso que a ojeriza ao comunismo e as ressalvas em relação à Rússia não podem ser vistas como legítimas na Ucrânia. São sentimentos naturais de uma região muito afetada pelas infâmias do regime soviético e que tendem a criar feridas que permanecerão abertas por décadas ou séculos. O problema é quando isso se torna a semente para uma ideologia baseada em ressentimento e ódio, que tenta destruir o que é absolutamente indestrutível: a realidade histórica.

Da mesma forma que crimes e abusos foram praticados contra os ucranianos na era soviética, questões fundamentais para a construção da própria identidade ucraniana devem ser creditadas ao regime comunista. A própria formação da Ucrânia enquanto Estado – e o acréscimo a ela de regiões como a Crimeia e o Donbass –, por exemplo, nada mais é do que herança dessa época que Kiev parece hoje querer “esquecer”. Como em todos os períodos da história humana, a era comunista foi marcada simultaneamente por dores e alegrias, devendo ser lida, tanto quanto possível, de forma lúcida e sem rancores.

A tentativa ucraniana de “cancelar” os líderes soviéticos não soa como uma versão “de direita” do mesmo projeto esdrúxulo que tenta “cancelar” os bandeirantes e burocratas do Regime Militar no Brasil?

Aliás, indo além da Ucrânia, Andrey foi ainda mais ao ponto em nossa conversa quando disse: “somos cristãos e conservadores, mas nossos avós morreram usando a farda soviética – não podemos ignorar isso”. De fato, este é um curioso “detalhe” que os ocidentais costumam esquecer quando analisam o tema que tratamos aqui. A ideologia comunista – nefasta para qualquer cristão e conservador – era o pensamento hegemônico na Rússia quando os nazistas invadiram o país e dizimaram 27 milhões de pessoas. E foi sob os símbolos dessa ideologia que os russos marcharam até Berlim.

O tempo fez questão de soterrar a ideologia, mas os símbolos sobreviveram ao tempo. A vitória na Segunda Guerra Mundial – não por acaso chamada “Grande Guerra Patriótica” pelos russos – foi eternizada como o evento mais importante da história da Rússia, sobrevivendo de forma intacta ao fim da União Soviética e à superação do comunismo enquanto ideologia e sistema. Tudo se foi, mas os símbolos se cristalizaram – e hoje os russos incorporam o passado soviético como uma peça importante de sua história, respeitando-a dentro dos limites temporais e das circunstâncias em que existiu.

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É bom lembrar que, da mesma forma que “os avós” dos russos de hoje morreram lutando pelo comunismo, os “seus bisavós” morreram nas perseguições religiosas e nos programas brutais de perseguição da União Soviética. Os males da época também estão vivos na memória do povo, razão pela qual o comunismo enquanto ideologia já praticamente inexiste. Dentre as pessoas com quem conversei, absolutamente ninguém expressou qualquer saudosismo ou admiração pela ideologia do passado. Mas o respeito à forma como seus antepassados viveram continua marcante. Os símbolos, figuras históricas e datas da União Soviética foram preservados e ressignificados – agora são parte da longa história começada na Rus’ de Kiev no século IX e ainda viva e em movimento.

Não posso deixar de olhar este cenário sem me questionar: não estaria o direito dos russos de honrar o passado soviético no mesmo patamar que o nosso direito de celebrar figuras históricas associadas à escravidão, ao bandeirismo ou outras práticas que hoje, por razões óbvias, chocam nossas sensibilidades? A tentativa ucraniana de “cancelar” os líderes soviéticos não soa como uma versão “de direita” do mesmo projeto esdrúxulo que tenta “cancelar” os bandeirantes e burocratas do Regime Militar no Brasil?

Mais do que isso, chego a me questionar até mesmo se os frutos de um “cancelamento de esquerda” aqui não poderiam ser tão desastrosos a longo prazo quanto foram as consequências do “cancelamento de direita” experimentado na Ucrânia. Estaríamos mesmo tão distantes de um cenário de desintegração social, separatismo e guerra civil? Sem fazer qualquer diagnóstico pessoal, posso dizer que muitos analistas acreditam que, definitivamente, não estamos.

Aliás, enquanto no universo virtual, alguns brasileiros se preocupam com a forma como russos veem Lenin, no mundo real, toda a “ucranização” do Brasil em relação ao passado avança a passos largos. É bom lembrar que publicamente vivemos na República construída sobre “o ódio e o nojo” ao regime anterior – talvez, os brasileiros devessem esquecer Lenin e prestar atenção a como nossas autoridades celebram a memória dos nossos próprios líderes recentes.

De fato, o que me parece é que o caso ucraniano deixa claro como qualquer ódio ao passado é automaticamente nocivo para o presente e para o futuro. Sendo a realidade mais pura e objetiva, o passado simplesmente não pode ser “cancelado”, senão reconhecido e superado – sem mágoas e chagas, senão aprendizados para a construção contínua da história.

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Lucas Leiroz é jornalista e analista geopolítico, colunista nos portais InfoBRICS, CGTN, Global Researcher e Veterans Today. Foi correspondente de guerra no Donbass.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]