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Além de lotação reduzida e distanciamento, algumas outras atitudes ajudam a ter cerimônias religiosas mais seguras em tempo de pandemia. Imagem ilustrativa.
Além de lotação reduzida e distanciamento, algumas outras atitudes ajudam a ter cerimônias religiosas mais seguras em tempo de pandemia. Imagem ilustrativa.| Foto: Matthias Böckel/Pixabay

Como dizia o renomado senador romano Cícero (63 a.C. - 43 a.C.): “Que tempos os nossos! E que costumes!” Nosso país vive um colapso de inversão de papéis. A função dos governantes é cuidar, zelar e proteger o povo, mas o que vemos é um completo descaso. Se não fosse a mobilização de instituições particulares e ações individuais, o número de mortos seria muito maior no Brasil por conta da COVID-19. O caso de Manaus é emblemático.

Estamos nas mãos de pessoas que ocupam cargos importantes, mas são incompetentes para tal. Vidas são ceifadas por negligência.

Mas não quero, neste artigo, simplesmente criticar o governo e sua base. No entanto, quero focar o que o cristianismo em sua boa parte (católico e protestante) está fazendo neste período. O apoio acrítico a um sistema de morte é completamente oposto à mensagem do cristianismo. Mesmo que o leitor não apoie a condução do governo nos processos do combate à Covid-19, a fome no Brasil, o desemprego, o crescente número de miseráveis: tudo que é feito é feito no seu e no meu nome. O regime democrático avulta a nossa responsabilidade nesse sentido.

O fato de alguém professar uma fé não o torna apolítico. Não lhe dá o direito de abrir mão deste mundo em prol de um mundo vindouro que seja melhor e mais justo. Isto é niilismo total, o que seria completamente contraditório à fé judaico-cristã. Mesmo aqueles que levam uma vida apartada, como monges, ermitãos, sábios, pesquisadores e artistas, se fossem realmente apolíticos, não carregariam também a culpa. Mas a responsabilidade política também os atinge, porque eles também têm a vida regida pela ordem do Estado. Não existe um “de fora” no Estado moderno.

Diante disto, soa muito estranho quando um governo estadual toma a iniciativa da preservação da vida e orienta as religiões temporariamente a pararem suas celebrações. A ordem ou decreto não diz respeito somente às igrejas cristãs, mas a qualquer expressão religiosa que aglomere pessoas. No entanto, na cabeça dos religiosos fundamentalistas cristãos de linha evangélica, isto é uma perseguição contra a Igreja, e o Estado quer fechar as portas dos templos. Isto me faz lembrar o que Martin Luther King Jr. disse: “A igreja não é a senhora ou a serva do Estado, mas, antes, sua consciência. Ela deve ser a orientadora e a crítica do Estado, mas nunca sua ferramenta”. Percebe-se que aqui temos atualmente a inversão dos papéis. Hoje o Estado diz para a Igreja que a sua função é cuidar de gente e combater o mal no mundo. Mas, quando se tem uma Igreja que foi cooptada pelo sistema de poder, fama e dinheiro, ela acaba por esquecer sua missão e papel no mundo. Aí vemos líderes religiosos fundamentalistas evangélicos brigando para manter seu templo cheio de gente.

Recentemente, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em uma entrevista, enalteceu a postura das igrejas protestantes no país, que contribuíram de forma exemplar com o isolamento social pelo temporário fechamento dos templos. Isto fez com que o país diminuísse drasticamente o número de infectados pela Covid-19. Oposto a isto foi o que ocorreu na Coreia do Sul, na Igreja de Jesus de Shincheonji, liderada pelo pastor Lee Man-hee. Ele ocultou os casos de Covid na igreja, com milhares de contaminados, e isto corroborou para o aumento de casos no país. Fica claro que o posicionamento da Igreja pode ser benéfico ou maléfico para a população.

Para oferecer peso ao que estou a falar, quero trazer como testemunha o maior nome da Reforma Protestante, Martinho Lutero. Ao lutar contra a peste negra do seu tempo – uma das maiores pestes da história, que matou milhares de pessoas –, ele disse: “existem pessoas que tentam a Deus ao agir de forma precipitada e imprudente, não tomando cuidados para proteger-se da morte e da peste. Tais pessoas não tomam remédios e não evitam lugares e pessoas infectadas, levam a doença na brincadeira, tentando mostrar que não têm medo dela. Isto não é confiar em Deus, mas tentá-lo. Deus criou medicamentos e nos deu inteligência para proteger e cuidar bem de nossos corpos, para que possamos viver em boa saúde”. Ele continua dizendo que a pessoa que não toma os devidos cuidados e, assim, prejudica seu corpo corre o risco de cometer suicídio aos olhos de Deus. E, se essa pessoa ficar doente e depois contagiar outras pessoas, ela será responsável perante Deus por assassinatos.

Lutero diz que um cristão deve pensar assim: “Pedirei a Deus que misericordiosamente nos proteja. Então vou fumigar, ajudar a purificar o ar, dar remédios e tomá-los. Evitarei lugares e pessoas onde minha presença não é necessária para não me contaminar e, desta forma, talvez me infectar e contagiar outros e assim causar sua morte como resultado de minha negligência. Se Deus quiser me levar Ele certamente me encontrará e eu terei feito o que Ele esperava de mim, e por isso não sou responsável pela minha própria morte ou pela morte de outros”.

Estamos hoje diante da oportunidade de não sermos cúmplices de um crime que tornou o Brasil objeto de espanto no mundo inteiro. Milhões indagam: que sangue circula nas veias daquele povo? Como pode permitir que seja tão desrespeitado? O que faz com que tolere o descaso, o obscurantismo e a incompetência, que têm levado à morte milhares de vidas humanas?

O direito fundamental à liberdade religiosa no Brasil não está sendo aviltado. Não há perseguição religiosa ao Cristianismo no país. O que está em jogo é uma regra única para que o povo não seja dizimado. No Cristianismo primitivo nunca houve templo para que o povo se reunisse. É desconhecido das Escrituras Sagradas, a partir do Novo Testamento, o que a Igreja do século 21 busca como espaço de adoração dentro de quatro paredes. Templo foi constituição estatal do imperador romano Constantino, nunca foi mandamento de Cristo. Tudo aquilo que Deus revelou na história como preservação da vida e o próprio ato de Deus se encarnar para salvar a humanidade não podem ir na contramão disto. Mesmo que o Supremo Tribunal Federal tivesse impedido os governos de proibir celebrações com público, não seria ético, pela ótica do reino de Deus, manter aglomerações religiosas. A Igreja continua viva e operante. Nada para a Igreja! Defender culto presencial em plena pandemia é infantilismo espiritual.

É possível prestar culto a Deus sem ir à igreja. Para o Cristianismo, o culto a Deus pode ser feito em qualquer lugar. O culto tem uma relação com o modo de viver, e não com as paredes de um lugar. Como o próprio Jesus disse, servi-Lo e adorá-Lo é cuidar do faminto, do órfão, da viúva e do miserável. Nestes tempos, é o que mais temos. Pessoas sofrendo com depressão, fome, desemprego e outras necessidades. Adore a Deus e mantenha a comunhão da fé servindo estas pessoas.

Christopher Marques é mestre em Teologia, pós-graduando em Ciências da Religião, professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina na área de Tanatologia e Espiritualidade, membro do grupo Coalizão Inter-Fé, que desenvolve pesquisas na área da espiritualidade e ciências, e autor de “Um novo olhar para a missão da Igreja”, “O que pensa a fé protestante sobre a política, cultura, sustentabilidade, trabalho e dignidade humana” e “Quando a Vontade de Viver Vai Embora”.

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