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Nem sempre a humanidade recebeu o aviso de que mudanças profundas estariam em curso. A vida, com suas lógicas imprevisíveis, muitas vezes foi lá e fez, alterando a precária ordem das circunstâncias ao embaralhar as cartas da existência. E, assim, do dia para noite, tivemos que sair em busca de novas respostas a problemas até então inexistentes.

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A tragédia do coronavírus, além de suas dores e perdas, traz consigo um alarme para os profundos rearranjos que pulsam na realidade contemporânea. Sem cortinas, após décadas de sucesso e prosperidade da globalização econômica, capitaneada pela hegemonia americana, fomos, agora, impactados por riscos reversos da moeda: um mundo globalizado está sujeito a danos transnacionais, tal como uma doença exponencial de largo alcance e difícil controle sistêmico.

Paralelamente, a Covid-19 exaltou a total incompetência dos sistemas políticos nacionais para a corrente complexidade do mundo. O motivo é reto e direto: problemas globais não resolvidos com paroquiais soluções nacionalistas de empreitada. Por imperativo lógico, desafios globais somente são superados por plurilaterais mecanismos de respostas internacionais. E, infelizmente, não as temos nem as esboçamos.

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No vácuo das soluções eficazes, vemos, então, inúmeras democracias ocidentais mergulharem nas turvas águas populistas de viés autoritário. Sobre o ponto, o passado faz lembrar que, nos colapsos da racionalidade, o surgir de uma voz histriônica pode parecer liderança para muitos que, desavisados, acabam sendo guiados pela limitação do egocentrismo. E, sim, quando o ego domina, a decadência reina.

Ora, por mais brilhante que seja a inteligência de um homem, ela sempre será absolutamente insuficiente para, individualmente, bem compreender a complexidade da vida. Por assim ser, a essência da democracia é o diálogo nas diferenças, viabilizando a soma de perspectivas na justa medida das soluções políticas. Nesse contexto, todo extremismo ou polarização radical é naturalmente antidemocrática, pois aniquila a possibilidade de composição de divergências em favor de uma tacanha visão unilateral.

Em seu excelente The World, a Brief Introduction [O mundo, uma breve introdução] (2020), o diplomata Richard Haas bem pontua que a História nos ensina que a ordem não é um estado natural das relações internacionais nem surge ou continua automaticamente, exigindo dedicação e esforço continuado dos governos, bem de todos aqueles que estão dispostos a colocarem diferenças de lado para a sustentação ordeira do mundo. No todo, as instâncias liberais do pós-guerra, erguidas pelo protagonismo americano, estão sendo duramente golpeadas, em especial porque o próprio Estados Unidos perdeu a referência reputacional de liderança global, através de funda alteração de sua estratégia de expansão econômica e consequente hegemonia política.

Na verdade, a flacidez do bloco europeu, associado à galopante emergência da China, em combinação com lances estratégicos da Rússia, colocaram um fim no equilíbrio inaugurado com a queda do Muro de Berlim. Há, portanto, um novo jogo de poder, ainda sem regras claras e despido de instâncias seguras de moderação. Isso sem contar com advento de autênticos titãs tecnológicos que terão papel central na novel arquitetura do poder.

Até o surgir de um equilíbrio estável, viveremos dias de alta turbulência política. O problema é que a economia tecnológica faz da instabilidade criadora um motor de aperfeiçoamento contínuo, colocando pressão vertical sobre as jurássicas estruturas governamentais. Como medida de reação e sustentação de feudos, é provável que a política tentará dominar a inteligência tecnológica com leis draconianas, tais como o controle de redes sociais, restrições de alianças econômicas, taxação hiperbólica de empresas de tecnologias, entre outros artifícios de autoritarismo. Enfim, viveremos episódios de forte tensão e agudo entrechoque de interesses pesados que, somente se acalmarão, com o surgir, legítimos e autêntico, de um novo acordo hegemônico de poder.

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Por tudo, o mundo está flagrantemente desorientado. Na escuridão, sempre haverá a hora da luz. E será através da virtude da razão e da corajosa expressão do pensamento que manteremos viva a possibilidade de vitória da liberdade sobre a irracionalidade feroz. Mas não sejamos ingênuos: o progresso da História não raro está sujeito a graves entreatos de retrocesso.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.