Os antigos manuais de jornalismo e não são muitos guardam uma estranheza. Estão ali, dissecadas, todas as regras da imprensa norte-americana que fizeram escola no Brasil a partir da década de 1940. Estudar como se deu esse intercâmbio tem sabor de arqueologia. É um prazer: a modernização botou uma faca no peito das literatices que encharcavam de lugares comuns as páginas dos diários.
Mas não é só o que havia de novo sob o sol. Existe outro aspecto o estatuto, ou a falta dele, que esses diretórios davam aos leitores. Nas entrelinhas, é como se o destinatário da notícia fosse um ser insípido, inodoro e incolor. Por trás da clássica fórmula "emissor e receptor" se escondia uma prepotência flagrante: o receptor padecia, reduzido a uma tábula rasa.
É questão para uma guerra. A fórmula não diz que quem recebe a informação é passivo. Mas assim se entendeu nessas terras em que o jornalista sofre de síndrome de Super-Homem. Não se trata de fazer aqui uma crítica rasteira ao imaginário da profissão. Longe disso. Se os jornalistas se colocaram no papel de voz dos que não têm voz, essa atitude pede uma exegese. Urge explicar por que no Mundus Novus os operários da informação se confundem ao salvador da pátria. Mas essa é outra conversa.
Interessa aqui pensar por que diabos a imprensa brasileira foi com tanta sede ao pote do jornalismo americano e não fez o mesmo em relação às teorias da recepção. Estava tudo no mesmo pacote. Barthes, os iluminados da Escola de Constança... Umberto Eco, mais adiante. Não faltam exemplos de grandes autores que demoliram, a partir dos anos 1950, a imagem tola do leitor mecanizado, sem tensões, incapaz de modificar os sentidos do que lê com as informações de seu "arquivo particular". Ler é um ato violento e sensível mesmo a leitura de frases diretas, curtas, sem adjetivos ou advérbios.
Para entender as razões dessa domesticação do leitor é preciso testar hipóteses. Uma delas traficada de Antonio Candido sugere que a imprensa replicou o olhar pouco lisonjeiro da intelectualidade sobre o povo brasileiro. Os doutos lamentam o público que têm. A imprensa seguiu o corso, daí o tratamento paternalista, que traduz o receptor como um bebê à procura de colo. Ora, aquele que lê é aquele que fala. É adulto, ou pelo menos assim deve ser tratado. Do contrário, não há pacto. E sem pacto não há solução.
Outra hipótese é a de que a teoria da recepção e suas surpreendentes revelações sobre as vontades do leitor pareceu exótica demais para uma época em que se convivia com censores dentro das redações. Levar em conta "como" se lê, e que ler não é um ato 100% controlável, deve ter sido tomado como um discurso sofisticado, papa fina para acadêmicos. Miseravelmente, o assunto ficou para mais tarde.
A história agora cobra da imprensa, das escolas, das igrejas e de quem mais a barbeiragem de ter subestimado os saberes do leitor, esse misterioso. Não faltam pesquisas para decifrá-lo. Surgem às pencas, não raro para nos confundir ainda mais. Se num dia estudos da Universidade de Oregon mostram que leitores de jornal retêm mais informações do que leitores on-line esses escaneadores de texto , em outro o Pew Reserarch Center informa que leitores de tablets pode ser profundos, sortidos e mais dedicados que os fiéis da folha de papel. Façam suas apostas a hora é agora.
José Carlos Fernandes é jornalista, doutor em Estudos Literários pela UFPR e professor do curso de Comunicação Social-Jornalismo da UFPR. Este texto integra série especial de artigos sobre os 50 anos do curso de Jornalismo da UFPR.
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