Os embaixadores, de Hans Holbein| Foto: /Reprodução

A modernidade é um verdadeiro mosaico. Reúne peças de variados tons para formar uma única grande figura. Há uma dessas partes do mosaico que merece atenção neste tempo que nos toca viver. E que Rafael Ruiz, em seu livro Alienação e Intolerância: um diagnóstico sobre os tempos modernos(Cultor de livros, 2018), bem soube tratar com clareza e objetividade. É uma luz que não nos tira propriamente do túnel escuro e sombrio. Mas nos permite, livremente, dirigir-se à saída.

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Fazer um diagnóstico de algo nem sempre é fácil. Quanto mais fazê-lo da modernidade, rica em facetas diversas e em cores tão variadas. O diagnóstico pode ser acertado ou não, desde o ponto subjetivo do interlocutor. Mas nos parece que o Ruiz fez um golaço com sua análise, há tanto tempo pensada e diuturnamente refletida.

Aliás, por falar em pensar, pode-se dizer que, talvez, seja esse o tema central da sua reflexão. Não se trata simplesmente de alimentar um big data de informações. A informação, por si só, não denota conhecimento. É preciso que essa informação passe pelo crivo da razão. Tire-se consequências. Refletir reclama tempo. Não é uma atitude em alta em nossos dias, tão marcada pela velocidade imprimida pela internet, as mensagens instantâneas do WhatsApp e o cabedal de informações da mass media.

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O problema da consciência costura todas as linhas de seu livro. Aponta como chave de leitura do início da modernidade a distinção, ficticiamente criada pelo Estado moderno, entre o foro interno (valores, princípios, convicções pessoais) e o foro externo (leis, normas, regulamentos). Segundo teóricos como Hobbes e Locke, para viver em sociedade, o homem deveria abdicar de seus princípios e sacrificá-los no altar do deus Estado. Poderia (deveria) negar a sua consciência e, muitas vezes, agir contra ela. O bem e o mal, o justo e o injusto, seriam definidos por uma mítica convenção social. Essa cisão no homem trará consequências nefastas mais na frente. A alienação de consciência faz com que o homem renuncie a si mesmo.

Segundo teóricos como Hobbes e Locke, para viver em sociedade, o homem deveria abdicar de seus princípios e sacrificá-los no altar do deus Estado

No âmbito jurídico, os tentáculos do Leviatã também exerceram sua influência sob o mito da “segurança jurídica”. A sociedade precisaria de leis rígidas e claras e o juiz, outrora visto como o homem da prudência (daí o termo “jurisprudência”) que aplicaria o direito ao caso concreto e decidiria conforme a sua consciência, agora seria visto unicamente como “la bouche de la loi”. O direito seria, portanto, resumido ao cumprimento estrito da lei, por mais que, muitas vezes, as leis fossem injustas e arbitrárias.

A modernidade também seria a grande vanguardista das ideologias, aqui entendidas como um sistema de interpretação parcial da realidade com pretensão de universalidade. O homem não tinha mais necessidade de pensar, bastava replicar o modelo pré-fabricado e defendê-lo com unhas e dentes, mesmo se se percebe que a teoria não se encaixa na realidade. Como o cientista que passa anos desenvolvendo um aparelho para medir o grau de salubridade do mar e, ao testar o aparelho, não conseguindo o que esperava, diz: “esse mar não serve!”. Vale citar as principais ideologias da modernidade: Iluminismo, Romantismo, liberalismos, marxismos e niilismos. Uma característica em comum de todas elas, além de uma abordagem omnicompreensiva, seria, como diria Voegelin, uma imanentização do Escathon. Ou seja, uma espécie de escatologia secularizada que prometia o céu na terra.

Já a escola das ideias estava fervilhando. O Iluminismo, com sua pretensão de razão universal, queria explicar todas as coisas. Propôs a emancipação do homem no âmbito religioso e tentou ressignificar a moral e a política à margem de Deus. O “sapere aude” seria a tábua de salvação do homem inculto e supersticioso que estava prestes a afundar nas trevas da ignorância. A ciência e a técnica chegariam a tal nível que teriam respostas a todos os problemas do homem. Todavia, com as guerras mundiais parece que a pretensão iluminista entrou em colapso. A desconfiança da razão recrudesceu e as questões-chaves (o problema do mal, do sofrimento, do amor) continuam, aparentemente, sem resposta. Aqui também vai ser introduzido o conceito de uma laicidade feroz, causada pela ruptura drástica do âmbito religioso e do âmbito terreno, que tentaria engaiolar o homem religioso ao santuário de sua consciência, mas excluí-lo de toda vida pública. Como se o fato de professar algum credo não lhe permitisse opinar em temas de relevância social. O Iluminismo estaria pronto para, definitivamente, superar a religião.

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Enquanto o Iluminismo focou na inteligência, o Romantismo mirou na vontade, buscando uma libertação das amarras da natureza, despótica e carcereira da liberdade. O importante seria dar vazão aos sentimentos, que determinariam o “ser” das coisas. Contundo, o problema é que o homem não impera sobre os seus sentimentos, mas, ao contrário, impera sobre sua vontade. Uma vontade, por sua vez, que não respeitasse as leis da natureza, parece-nos, seria uma vontade tirânica. Não é o homem quem cria tais leis. Cabe apenas reconhecê-las. Essa discussão está na gênese de todo ulterior debate sobre a ideologia de gênero.

Uma das maiores tensões no debate de ideias moderno se deu entre os liberalismos (sobretudo o liberalismo econômico) e os marxismos (em especial o marxismo científico). No que tange a consciência, temos no liberalismo moral as maiores implicações. A verdade – defendem esses liberais – é escolhida pela votação de uma maioria. Portanto, não importa tanto “o quê” é decidido, mas o quórum de aprovação alcançado. Visando o respeito as liberdades individuais, a consciência deveria se moldar ao modelo pacífico de convivência social que não toleraria opiniões intolerantes. A contradição é que o juízo de “intolerante” sempre tende a se identificar com o espantalho criado para quem pensa diferente. Os que mais almejam a liberdade de expressão, geralmente, vêm a ser os seus algozes. Já o marxismo científico tinha como principal ideal a derrocada da religião, ópio do homem, para assim realizar a luta de classes (proletariado vs. patronato), por meio da tensão dialética hegeliana, e a consequente implantação do comunismo na sociedade. A dicotomia de ideologias vai dar azo a criação, tão usada em nossos dias, de um pensamento único: esquerda ou direita, progressista ou conservador, burguês ou operário. A realidade, tão rica e complexa, seria reduzida a um samba monocórdico. Aos homens, caberia comprar o pacote pronto (sem alterações) e seguir o script ideológico. A consciência mais uma vez fora relegada.

Uma das variantes do marxismo, por meio de Gramsci, teve forte penetração na América Latina. Para Gramsci, o marxismo não está superior à história, mas dentro dela. Neste sentido, desenvolve a teoria da hegemonia. Conjuga elementos da “sociedade política” e “sociedade civil”. A primeira seriam as engrenagens estatais, legais e judiciais. A segunda seria a relação dos homens entre si: partidos políticos, sindicatos, escolas, igrejas, imprensa. A hegemonia, portanto, o domínio, deveria se inserir no seio da sociedade civil, difundindo nas relações quotidianas por meio de valores, crenças e ideias, o consenso em torno de uma cultura. Criando o consenso, o grupo social hegemônico criaria o domínio. Como se faria isso? Adentrando, por meio das ideias, na sociedade civil, principalmente nas escolas, nas universidades e nos meios de comunicação. Ao invés de autênticos intelectuais, proliferou-se nos últimos anos a figura do “intelectual orgânico”. São os porta-vozes do Partidão. As “cabeças pensantes” da utopia, muitos até badalados, apregoam o livre pensamento, mas estão absolutamente dependentes e à serviço da ideologia do Partido (instância divina infalível). Recuam se fugirem do eixo de defesa doutrinal-partidária. Vemos isso nos malabarismos conceituais que fazem alguns “intelectuais” figurões na defesa de bandeiras que são insustentáveis à razão. Isso faz parte da “guerra de posições” identificada por Gramsci. Muitos nem acreditam nisso. O pior estágio é quando – sem saber – a estrutura de pensamento do sujeito já está completamente condicionada e engaiolada neste círculo. Delega-se, com isso, mais uma vez, a consciência.

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O marxismo tem, digamos assim, várias versões. A Escola de Frankfurt serviu de laboratório para a confecção de uma versão atualizada. Há vários sistemas operacionais: o nihilismo, o desconstrucionismo, o pós-estruturalismo etc. O ponto em comum de todos esses “sistemas” é o reconhecimento de que não existe um fundamento de verdade estável. O relativismo seria o próprio fundamento. Um comentário prosaico que valeria a pena reiterar seria a entronização, com incenso e três ductos do turíbulo, do Estado laico. Confunde-se não pouco frequentemente com um laicismo feroz e assiste-se a um ostracismo de pessoas que são impedidas de manifestar publicamente a sua fé. Como se a opinião de um religioso fosse sempre estritamente religiosa, ou como se fosse um sujeito de menor categoria. A luta contra a objeção de consciência, situação limite encontrada por quem professa algum credo para ser manter leal aos seus princípios, faz um raio-x de uma sociedade bastante influenciada pelo “modo inglês” de ver as coisas.

O cenário pintado até então com cores fortes e escuras pode ter soado um tanto quanto apocalíptico. O passeio que fizemos até aqui se assemelha a uma ida ao trem fantasma num parque de diversões. Caber-nos-ia tentar pontuar alguns pontos positivos e apresentar algumas perspectivas esperançosas. O pessimismo mata e a constatação dos males de nossos tempos não se presta a ficar nos lamentando, deve-nos, pelo contrário, mover-nos a uma busca otimista e vibrante de mudança social. Mas já abusamos da benevolência e da boa vontade do leitor, bem como ultrapassamos as linhas que, inicialmente, nós tínhamos proposto. Ficará para uma próxima. Mais ou menos breve, a depender dos nossos compromissos absorventes. Convidamos o leitor a refletir no que foi escrito. Quem sabe, na próxima, não possa nos ajudar a encontrar uma saída a esse beco?

Davi Melo, advogado, graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), mestrando em filosofia pela PUC-SP.