“Vi ainda todas as opressões que se fazem debaixo do sol: vi as lágrimas dos que foram oprimidos, sem que ninguém os consolasse; vi a violência na mão dos opressores, sem que ninguém consolasse os oprimidos.” (Eclesiastes 4,1)
Um dos eventos mais famosos da história política é, sem sombra de dúvidas, a Revolução Francesa. Em linhas gerais, a revolução que ocorreu no século 18 foi resultado de uma grande e difundida ambição dos poderes políticos, na época muito bem aparelhados por elites nobres e aristocráticas sobre os burgueses e demais trabalhadores. Em O problema da pobreza, o antigo estadista e teólogo holandês Abraham Kuyper (1837-1920) escreveu que “o absolutismo real e o orgulho aristocrático rapidamente se espalharam como câncer e introduziram na vida uma tensão insuportável, que finalmente desembocou na Revolução Francesa.”
Segundo a historiografia clássica, a Revolução Francesa ocorreu em uma França extremamente ruralizada, dividida em basicamente três classes sociais, os “três estados”: clero, nobreza e o terceiro estado, formado por trabalhadores urbanos, camponeses e a burguesia, equivalentes a 97% da população francesa, sofrendo com uma alta carga tributária, fome e condições precárias. Não é necessário ter a mente prodigiosa do economista Ludwig von Mises para adivinhar que esse modelo social e econômico gerou uma grande crise orçamentária na França.
Essas crises enfureceram o terceiro estado, ávido por uma solução. Para tentar contornar a situação, o rei Luís XVI promoveu algumas assembleias: a Assembleia dos Notáveis (1787), uma reunião somente entre os dois primeiros estados, que resolveram aumentar os impostos; e a Assembleia dos Estados Gerais (1789), contando com a participação do terceiro estado, com o problema da desproporção da representatividade social. As reivindicações deste grupo não foram bem recebidas pelo rei que, demorando na sua tomada de decisão, deu espaço para a formação radical da Assembleia Constituinte (1789), composta apenas por deputados do terceiro estado, sujeitando a monarquia a uma Constituição.
Paralelamente a essas efervescências políticas, ocorreu a grande revolta popular de 14 de julho de 1789: a Queda da Bastilha, uma cadeia com presos políticos e grande marca do poder do governo absolutista francês. Daí em diante, transformações ocorreram de forma violenta, batalhas sangrentas e mudanças radicais. O rei foi decapitado na guilhotina, dando início à República Jacobina (1793-1794). Muitas mudanças positivas aconteceram, mas ainda havia muita instabilidade política, culminando no período do Terror, em que muitos perseguidos políticos foram mortos na guilhotina, repetindo a mesma crueldade do governo passado. No fim, os girondinos – um grupo formado pela alta burguesia – acabaram tomando o poder. O fim da revolução veio em 1799, com Napoleão Bonaparte (1769-1821) e o Golpe do 18 Brumário.
Sobre a revolução, o historiador liberal Alexis de Tocqueville (1805-1859) fez um comentário fatalista: “a Revolução resolveu repentinamente, por um esforço convulsivo e doloroso, sem transição, sem preocupações, sem deferências, o que ter-se-ia realizado sozinho”. Isso reflete uma
insensibilidade grotesca do pensador, uma indiferença equivocada sobre os dilemas sociais daquela sociedade. As mudanças não acontecem pela crença num progresso positivo e natural. A tendência do mundo caído é deteriorar-se naturalmente. Conforme escreveu Kuyper, “se o homem não tivesse caído no erro, se o egoísmo e o crime não interferissem, o desenvolvimento da sociedade humana sempre seguiria seu curso em paz e de forma ordenada”. Porém, “os seres humanos não se encontram nesse tipo de condição”. É preciso intervir e ser ativo na sociedade quando ela começa a demonstrar sinais de doença, avareza, ambição e desigualdades. Não devemos esperar a melhora se realizar sozinha. Mas como intervir de uma forma correta e cristã?
A intervenção do terceiro estado francês lamentavelmente – ainda que sofresse injustiças reais – foi movida pelo que Kuyper chamou de “princípios falsos”: “essa intervenção, por ser proveniente de princípios falsos, tenha feito doentio o que poderia ser saudável, envenenando em muitos aspectos nossa relação mútua e trazendo ao nosso meio misérias inomináveis em lugar da felicidade e da honra das nações”. O resultado da intervenção radical e violenta, baseada em princípios tão ambiciosos e orgulhosos quanto os da aristocracia, foi nada além de ilusão. Precisamos intervir nesse mundo caído, sim, especificamente na questão social, mas fundamentados em valores e em virtudes. Conforme sabiamente observou o historiador e filósofo político Russell Kirk (1918-1994), “os homens não podem melhorar uma sociedade ateando fogo a ela: precisam buscar suas antigas virtudes e trazê-las de volta à luz”.
Somos chamados por Deus para sermos “sal e luz” (Mt 5,13-14) na sociedade, especialmente quando ela é tomada pelas trevas da imoralidade, da indiferença, da ganância e do orgulho. A ordenação divina quer assim e devemos nos ocupar disso, de alguma forma. A forma cristã, contudo, é muito específica na resolução de conflitos sociais; não se pode compará-la às propostas materialistas e igualmente gananciosas dos socialistas, nem ao liberalismo racionalista e nem mesmo à manutenção quietista de um conservadorismo cético. “Todas elas”, escreve Lucas Grassi, “começam pela raiz errada e propõem falsas respostas à questão social”.
A resposta cristã à questão social é pautada num compromisso com o Reino de Cristo. Kuyper, em seu discurso de 1891 sobre a questão social, diz que a Igreja Cristã pode influenciar as mudanças políticas de uma sociedade de forma tripla: Ministério da Palavra; Ministério da Misericórdia; e a Igualdade de Fraternidade. Em primeiro lugar, a Palavra luta contra as ambições pelo dinheiro de modo bilateral, entre ricos e pobres, apresentando o verdadeiro tesouro do homem, a salvação em Cristo. Em segundo lugar, a Misericórdia atua na comunhão dos bens e no serviço em amor dos cristãos em prol dos carentes e aflitos, como bons mordomos daquilo que receberam de Deus – suas casas, propriedades e riquezas. Por fim, a Igualdade da Fraternidade é a abolição de demarcações artificiais entre os homens. Todos, pobres ou ricos, devem se reunir numa mesma mesa. Assim, analisamos as revoluções e demais movimentações políticas do passado e de nosso tempo e apresentamos, como cristãos, uma forma ortodoxa e prática – uma solução verdadeira – pautada em valores e virtudes do Reino.
Fernando Razente é historiador com atuação em rádio, assessoria e mídia.