Em artigo recente publicado pela Gazeta do Povo foram abordados alguns desafios para a Defesa Nacional que o Brasil terá que enfrentar nas próximas décadas. Desses, o mais urgente relaciona-se com a grande dependência que o país possui em meios de combate e tecnologias estrangeiras para suprir suas Forças Armadas. Essa constatação levou a que se propusesse um objetivo estratégico voltado a reduzir essa dependência em um prazo que reflita a urgência com que o problema deve ser solucionado, mas que seja exequível, dada a magnitude dos recursos humanos, tecnológicos, industriais e financeiros requeridos.
Tal objetivo pode ser resumido como alcançar, em um período de 24 anos (correspondente a seus períodos de governo) uma significativa autossuficiência em altas e média-altas tecnologias críticas para o desenvolvimento de produtos de defesa considerados estratégicos e a criação e/ou consolidação das empresas estratégicas , capazes de conceber, desenvolver, fabricar e manter esses produtos.
Um objetivo tão amplo e genérico suscita muitas questões relacionadas ao seu detalhamento e, principalmente, a como alcançá-lo. Tais questões não possuem respostas simples e dificultam a construção do necessário consenso. Ou seja, a definição dos instrumentos adequados para alcançar esse objetivo, ou o “como” fazer, é um aspecto muito crítico.
Entre os desafios para a Defesa Nacional que o Brasil terá que enfrentar nas próximas décadas o mais urgente relaciona-se com a grande dependência que o país possui em meios de combate e tecnologias estrangeiras para suprir suas Forças Armadas.
Diante disso, proponho algumas ações de natureza pragmática, perfeitamente exequíveis e não exigem aumento de orçamentos e dependem apenas de vontade e decisões políticas.
Elas abrangem três tipos de ações, voltadas para realizar reformas institucionais para garantir governança e capacidade de execução por parte do Estado; viabilizar legalmente a possibilidade de o Estado investir para desenvolver e sustentar empresas estratégicas de defesa, com uma adequada regulação; e resolver o problema de financiamento dos investimentos mínimos necessários.
É importante entender que todas essas ações se apoiam mutualmente para o alcance do objetivo final e formam uma estrutura interligada em que a perda de um elemento poderá comprometer irremediavelmente a higidez das medidas propostas e o resultado desejado.
Entretanto, a primeira ação – a reforma institucional – pode ser considerada como um pré-requisito para o alcance do objetivo estratégico, porque é ela que viabilizará a competência técnica e de gestão requeridas para resolver o problema.
Todas essas ações foram apreciadas pelo conselho consultivo do Centro de Defesa & Segurança Nacional (CEDESEN) para elaboração de uma sugestão de Programa de Governo na Área de Defesa, que foi encaminhada a todos os candidatos presidenciais às eleições brasileiras. A sugestão do CEDESEN adotou o objetivo estratégico acima enunciado, mas não incluiu todas as ações que foram concebidas e que trato neste artigo.
A capacidade militar de um país depende de dois instrumentos de defesa igualmente essenciais. As Forças Armadas (FFAA), que é um sistema cuja finalidade é prover capacidade operacional de combate e outro sistema, aqui designado como Base Logística de Defesa (BLD), porque a sua finalidade é prover a capacidade de logística de defesa, sem a qual as FFAA não podem operar e nem mesmo existir.
Cabe esclarecer que logística de defesa abrange duas atividades que são interdependentes, mas muito diferentes em suas características e finalidades. Existe uma logística de defesa, de natureza tática, também conhecida como logística de operações, ou logística militar, e cuja finalidade é apoiar o emprego de unidades militares combatentes. O outro tipo de logística de defesa tem uma natureza estratégica e uma de suas finalidades é fornecer os meios que as FFAA necessitam para compor suas unidades combatentes. Essa logística é permanente, tanto em períodos de paz quanto de guerra, e sua finalidade, em um sentido amplo, é desenvolver e sustentar o emprego dos Instrumentos de Defesa.
Essa Base Logística de Defesa possui dois lados que devem atuar de forma sinergética e, em alguns casos, quando se trata de produtos de defesa estratégicos, de forma simbiótica. Um lado que cuida da oferta de meios de defesa, conhecido como Base Industrial de Defesa (BID) e um lado que cuida da demanda desses produtos, que é provido por instituições do Estado, altamente profissionalizadas. Modernamente, em todos os países com alguma relevância militar, industrial e tecnológica, esses dois sistemas são separados e independentes. A boa prática internacional, por razões de eficácia e eficiência, é que exista apenas um órgão para cuidar da logística de defesa estratégica. Mas vou me ater apenas às reformas necessárias nas instituições do Estado que cuidam do lado da demanda da Base Logística de Defesa. Para tanto, apresento três propostas.
A primeira é criar um órgão, subordinado diretamente ao Ministro da Defesa, independente das FFAA, para cuidar de aquisições, pesquisa e desenvolvimento de produtos de defesa e tecnologias críticas para defesa e de políticas industriais e de inovação específicas para defesa.
A criação desse órgão poderá ocorrer da mesma forma como foi feito com a Força Aérea Brasileira há mais de 80 anos, com a transferência de instalações, pessoal e meios do Exército e da Marinha. Essa medida exigirá um amplo estudo para detalhar quais recursos das FFAA deverão ser transferidos para o novo órgão. Mas o ponto de partida é uma decisão política.
Essa reforma terá grande impacto na organização da demanda de produtos e tecnologias de defesa e deverá ser complementada por outra ação voltada para organizar o setor que cuida da oferta desses produtos. Um ponto chave para a viabilidade de um órgão dessa natureza é a existência de um corpo de profissionais altamente qualificado para executar as complexas e especializadas atividades que terá que desenvolver.
A capacidade militar de um país depende de dois instrumentos de defesa igualmente essenciais. As Forças Armadas (FFAA) e outro sistema, aqui designado como Base Logística de Defesa (BLD).
A segunda proposta é criar uma nova carreira militar, com um novo nome, independente, sem subordinação aos comandantes das FFAA, mas espelhada na carreira das demais forças, com ascensão administrada separadamente pelo responsável pelo novo órgão que cuidará da logística de defesa estratégica.
Inicialmente essa carreira poderá ser preenchida com militares transferidos das três FFAA, principalmente, mas não exclusivamente, dos quadros de engenheiros que tenham as qualificações exigidas e optem pela mudança. Exatamente como já foi feito no passado quando da criação da Força Aérea Brasileira.
Por fim, a terceira proposta é criar uma nova carreira de especialista civil de logística de defesa, com ascensão administrada pelo responsável pelo novo órgão que cuidará da logística de defesa estratégica. Inicialmente, essa carreira poderá ser preenchida com civis transferidos das três FFAA, que atuem em órgãos tais como DCTA, CTEX, IME e IPqM, que tenham as qualificações exigidas e optem pela mudança.
Essas propostas não só implicarão em significativa redução dos custos fixos da estrutura de defesa atual, que é muito redundante, liberando recursos para investimentos, como não exigirão a contratação de mão de obra adicional. Mas só poderão se concretizar se houver vontade política.
Eduardo Siqueira Brick, Ph.D., é professor titular aposentado da Universidade Federal Fluminense, CMG reformado do Corpo de Engenheiros e Técnicos Navais da Marinha do Brasil, membro da Academia Nacional de Engenharia (ANE) e pesquisador do Núcleo de Estudos de Defesa, Inovação, Capacitação e Competitividade Industrial (UFFDEFESA) e do Centro de Defesa & Segurança Nacional (CEDESEN), do qual também é membro do Conselho Consultivo.