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Se no futuro existir um medidor de mentiras, o início do século 21 ganhará o prêmio de era da mentira.

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Uma filosofia da mentira é algo necessário para qualquer dossiê de temas urgentes. Sabe-se que a mentira foi duramente condenada pelo filósofo Immanuel Kant no século 18. Para ele, se ninguém mentisse, o mundo seria mais ético e mais “transparente”. Se vivesse hoje, acreditaria, provavelmente, na gestão ética dos indivíduos através de uma espécie de sistema universal de compliance.

Contra essa ideia de um mundo perfeito da transparência, o russo Dostoiévski, no século 19, visitando feiras de ciência da Europa ocidental, já percebia a morte da privacidade pelas mãos de um “palácio de cristal” onde a vida seria um fato “claro e distinto”.

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No Brasil, nosso maior filósofo da moral, Nelson Rodrigues, em pleno século 20, clamava “mintam, mintam por misericórdia!”. Nelson pensava que, sem a mentira, a vida em sociedade seria impossível. A mentira, nesse caso, era uma forma de doçura para com as fraquezas humanas. Aquele tipo de mentira misericordiosa que sustenta jantares em família, amizades, longos relacionamentos, silêncios honrosos em nome de um morto ou a piedade diante de uma feia.

Mas há formas de mentira que precisam ser mais analisadas por nossa vã filosofia. Refiro-me à mentira a serviço do marketing moral. Esse tipo de mentira visa vender a ideia de que somos uma época mais avançada em costumes, afetos e comportamentos. Se formos à tradição filosófica, veremos que a mentira contemporânea se encaixa no tipo de mentira que se chama mentiras da vaidade. Vejamos três casos.

A vaidade ferida, normalmente, se transforma em sua irmã ainda mais miserável, a inveja. A falsa afirmação do marketing moral de que todas as pessoas são iguais (uma corruptela da ideia justa de que todos devem ser iguais perante a lei, mentira essa evidente, na verdade) gera, no convívio interno a instituições, a mentira travestida de normas burocráticas.

Alguém sob forte inveja pode, facilmente, querer destruir a fonte de sua humilhação cotidiana (por exemplo, destruir alguém muito melhor do que você profissionalmente) lançando sobre essa fonte (uma pessoa, na maioria dos casos) um conjunto de normas que visa inviabilizar a vida dessa pessoa.

Se indagado acerca da causa desse conjunto de normas burocráticas asfixiantes, o mentiroso no exercício de sua função burocrática dirá que apenas exerce sua função, aplicando as normas.

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Como muitas normas burocráticas visam mesmo à destruição da espontaneidade e criatividade, e riscos inerentes às duas, em nome da mediocridade segura, o mentiroso burocrático estará seguro no exercício de sua função. Não prestamos a devida atenção ao fato que a mediocridade é a forma mais segura de viver que existe.

Fala-se muito em “pensar fora da caixa”, mas, na verdade, nunca o mundo corporativo investiu mais no seu contrário: as pessoas devem ser cada vez mais medíocres e respeitadoras dos limites dessa caixa.

O dinheiro acumulado sempre leva o seu dono à conclusão de que a melhor política é a covardia. Apesar de se falar o contrário disso, a verdade é que o acúmulo tende a tornar você uma formiga contida em seu formigueiro.

Falar em “pensar fora da caixa” é para o pensamento da “gestão de ideias” o que a punheta é para o sexo: uma atividade segura, sem riscos de engravidar alguém. Quando o risco de perda é muito alto, a melhor política é a mediocridade que paga pouco, mas sempre paga.

As relações entre homens e mulheres nunca foram tão ruins como hoje. O desinteresse pelo sexo é seu maior sintoma. Sexo suja, implica em riscos e precisa de um “outro” para ser realizado.

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Aliás, uma das maiores mentiras contemporâneas é a masturbação ética ao redor da “alteridade”(o tal do “outro”). Fala-se muito dele, mas o eliminamos à nossa volta. Outros na África são mais seguros do que em casa. A ideia de que as pessoas evoluíram nos afetos é, talvez, a maior de todas as mentiras contemporâneas. Suspeito, na verdade, que “involuímos”. Somos uns retardados do afeto.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.