Como era esperado, foi bastante controversa a recepção à medida provisória que institui a reforma do ensino médio, apresentada pelo presidente Michel Temer e pelo ministro da Educação, Mendonça Filho, na quinta-feira. A começar pela forma atabalhoada com que foi publicizada, com duas versões em menos de 12 horas – a primeira, que tornava opcional o ensino de Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia em parte do ensino médio; e uma segunda, em que o governo, se desculpando pelo “equívoco”, recuava e reintegrava essas disciplinas ao currículo obrigatório.
O descontentamento, principalmente com a maneira como a reforma foi apresentada, não ficou limitado aos profissionais da educação. Em nota publicada na sexta-feira, o Ministério Público Federal, embora reconhecendo a necessidade de uma reforma no ensino médio, afirma ser temerária a utilização de uma MP “para tratar de tema tão sensível e complexo”. E sentencia: “por se tratar de tema que envolve milhares de instituições públicas e privadas, centenas de organizações da sociedade civil e milhões de profissionais, imaginar que um governo pode, sozinho, apresentar uma solução pronta e definitiva é uma ilusão incompatível com o regime democrático. Mais que inefetiva, a apresentação de soluções fáceis para problemas complexos é um erro perigoso”.
Não há menção no texto a políticas de valorização docente
Uma reforma no currículo do ensino médio é necessária, e sobre isso há pouco o que discutir. Mas a proposta apresentada pelo governo, embora contenha aspectos positivos, espalha uma série de armadilhas ao longo do texto, e é principalmente por isso que uma leitura atente e cuidadosa da MP é imprescindível. Não há indicação clara, por exemplo, sobre como o governo federal e, principalmente, os estaduais pretendem arcar com as mudanças propostas, tais como a ampliação da carga horária e a progressiva implantação da educação integral.
A ambiguidade nesse quesito caminha em mão dupla. De um lado, parece contraditório que o mesmo governo para quem congelar os gastos públicos por 20 anos é “imprescindível” para ajustar as contas do país – de acordo com o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles – e que batalha para aprovar a PEC 241 proponha justamente uma medida que, virtualmente, caminha na direção contrária. Além disso, estamos a falar de governadores que relutam até mesmo em pagar o piso nacional dos professores, mas que terão de assumir boa parte dos investimentos necessários às modificações trazidas pela MP.
As questões acima levantam outras dúvidas: como serão feitas as adaptações e de onde virão os recursos para equipar as escolas com laboratórios, bibliotecas e os demais espaços necessários para garantir a flexibilidade proposta pela reforma? Serão abertos novos concursos para preencher as muitas vagas hoje ocupadas por professores substitutos ou temporários? Não acho ruim a ideia de alunos poderem cursar, em parte do ensino médio, a área que melhor atende suas expectativas e projetos futuros. Mas só pode haver escolha se as escolas oferecem condições para tal: estrutura física e pedagógica e professores capacitados, principalmente.
Sem isso, o que na reforma aparece como opção se tornará, na prática, outra coisa, e em prejuízo do aluno, privado de uma formação mais integral e, ao mesmo tempo, sem acesso a uma formação específica (ou flexível, para usar os termos da reforma) de qualidade. Além disso, a MP não obriga as redes públicas a ofertarem todas as cinco áreas previstas – linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional –, o que, a depender da região e do contexto da escola, pode restringir significativamente a possibilidade de escolha.
A proposta tampouco aponta para a possibilidade de que novas ferramentas e metodologias de ensino sejam desenvolvidas e experimentadas. Insisto nesse ponto, que me parece importante: um “novo” ensino médio só funcionaria em escolas mais bem equipadas, com salas de aula e outros espaços devidamente transformados, inclusive no que tange ao número de alunos: é impensável um ensino integral com salas de aula superlotadas e em escolas funcionando nas condições precárias em que muitas se encontram hoje. A ampliação da carga horária pode ser uma oportunidade para tornar o ensino mais estimulante, ou a escola mais asfixiante. Como está, a MP parece não se preocupar com isso.
E, por fim, não há menção, igualmente, a políticas de valorização docente, e não é possível falar em qualidade na educação com professores desvalorizados, desmotivados e com baixos salários. Uma educação de qualidade pressupõe não apenas professores de preferência formados em suas áreas de atuação, mas que tenham a oportunidade de uma formação continuada, realizando cursos de especialização e aperfeiçoamento e contando, inclusive, com ações que incentivem o ingresso na pós-graduação, em cursos acadêmicos ou profissionais. Mais uma vez o texto é, na melhor das hipóteses, vago sobre isso.
Apesar das muitas armadilhas, no entanto, o pior da reforma não são as suas ambiguidades, mas o modo como se pretende implementá-la: não há como admitir que um assunto dessa importância seja objeto de uma medida provisória, algo reconhecido pelo próprio Ministério Público. Uma intervenção dessa envergadura no ensino médio não pode, sob a justificativa desonesta de que ela é necessária à melhora de nossos índices educacionais, ser imposta sem uma discussão com os setores diretamente envolvidos na educação; sem que especialistas sejam ouvidos; sem a opinião de profissionais que lidam, estudam e pesquisam a educação e o ensino.
A reforma, nesse sentido, nasce com um vício de origem: tentar impô-la por meio de uma MP sem antes discuti-la mais ampla e democraticamente, em especial com as entidades e setores envolvidos na educação, desqualifica os profissionais a quem compete dar sentido e corpo a ela.