| Foto: Hannah Grace/Unsplash
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Certa vez, fui visitar o falecido presidente da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo, José Carlos Madia, e fiquei por lá, na sede da entidade, para um café e dois dedos de prosa. Junto estava o ministro aposentado do Superior Tribunal Militar, Flávio Bierrenbach, alguém que eu considero o espírito do Largo de São Francisco (conhecedor das tradições e das trovas acadêmicas, verdadeira encarnação do aluno da Casa do Direito).

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Comecei a conversar com o ministro Bierrenbach sobre o Partido Novo, agremiação à qual ajudei com os procedimentos de registro e era então filiado. Eu falava empolgado do partido quando fui interrompido com aquela voz acostumada a interrogar réus em juízo: “Doutor Módolo, quem é o dono do Novo?”. Eu, à época, não entendi a pergunta: “Como assim, partido tem dono?”. O ministro não esperou a resposta e concluiu: “Todo partido tem dono”.

Tentei responder que João Amoedo era o presidente e tinha fundado o partido. O ministro se deu por satisfeito com a resposta, aí estava o procurado “dono” do Novo. Terminei o café e não falamos mais do assunto. Muita água correu por debaixo da ponte. O Novo terminou lançando João Amoedo para presidente da República em 2018, e eu me desfiliei do partido a tempo de votar e pedir voto para Bolsonaro naquele ano (que eu considerava a melhor opção).

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Tivemos a pandemia e o surpreendente (para o bem) Paulo Guedes. E após quatro anos com Amoedo atuando de forma sistemática contra o governo Bolsonaro, sendo expulso do próprio partido e tendo um fim de carreira melancólico ao apoiar a terceira eleição de Lula, eu percebi que, de fato, todo partido político brasileiro tem dono.

O livro é recheado de boas intenções. E de boas intenções, enfim... Ideia para problemas práticos do Brasil que é bom, nada

Mas, de onde vem essa instituição política brasileira, o “dono” de partido? Levy Fidelix, Eymael, Rui Costa Pimenta – são os dirigentes partidários mais caricatos. E Amoedo? Ele resolveu nos contar sua história e a narrativa da fundação do Novo em livro lançado em 2021, intitulado Sem Atalho (Portfolio-Penguin). No fundo, é a história de como ser dono de um partido e de como deixar de sê-lo (quase como no caso de Steve Jobs sendo “saído” da Apple, mas aqui fazendo, enfim, Karl Marx acertar uma: a história acontece como tragédia e se repete como farsa).

Já havia livro sobre a criação do Novo, melhor escrito, com estilo e português superior e muito mais honesto, lançado pelo colunista Roberto Motta, intitulado Os Inocentes do Leblon (livro no qual, inclusive, sou mencionado numa honrosa nota de rodapé, junto com outros guerreiros da época de criação do Novo).

A primeira questão que chama a atenção sobre o livro de Amoedo, se me permitem sair da cronologia nele contida, é justamente o contraste entre a postura de Amoedo em relação à fundação do Novo e a generosidade e franqueza pungente com a qual Motta fala do mesmo tema. No livro de Motta, João Amoedo é mencionado abertamente, ele recebe o devido crédito, sem omissão do seu grande papel na criação do Novo, tanto na concepção como no próprio financiamento das altas despesas iniciais (coletas de assinaturas, registro, despesas com advogados etc.). Essa transparência era necessária tanto para elogiar, quando preciso, como para criticar, quando o momento exigisse.

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Já no livro de Amoedo, salta aos olhos, primeiramente, a sua postura egocêntrica, como se ele tivesse sido o único ungido responsável por ter tido a ideia do partido, de criá-lo, de coletar assinaturas na rua para atender às exigências legais e tudo o mais. Essa postura encontra certa semelhança com a história de Theodore Roosevelt durante sua participação na Guerra Hispano-Americana, em Cuba (1898). Roosevelt comandou um regimento que lutou na ilha caribenha contra a Espanha colonial, os “Rough Riders”. Depois, Roosevelt soube, parafraseando Ulisses Guimarães, passar “Kaol na sua estrela” a fim de utilizar seu sucesso militar para fazer avançar sua carreira política, inclusive lançando um livro sobre a campanha. No mesmo ano, ele foi eleito governador de Nova York, o segundo maior cargo eletivo da América.

Mas o movimento de Roosevelt e sua pequena egotrip não passaram despercebidos. Como menciono no meu livro A Saga de Theodore Roosevelt (Lisbon International Press), “em maio de 1899, o livro ‘The Rough Riders’, de Roosevelt, chegava às livrarias. Foi um grande sucesso. Um satirista, Finley Peter Dunne, que escrevia por meio de um alter ego, o personagem Mr. Dooley, que falava um inglês macarrônico e cheio de gírias da época, chamou o livro de ‘Sozinho em Cubia’ (com a sua grafia autoral característica)”.

Seria, então, a criação do Novo um “one-man show” de Amoedo? Pelo contrário, muita gente participou e suou nas ruas pelo partido, inclusive Roberto Motta e Christian Lohbauer, além de outros (eu me recordo de ter visto até Danilo Gentilli na plateia de uma reunião inicial do Novo). Amoedo deu o devido crédito a esses voluntários e fundadores? Não, e comprovo com um trecho do livro.

O já mencionado Roberto Motta é o personagem desse trecho de Sem Atalho: “Em 2008, jantando em São Paulo com um amigo com quem estudara no Santo Inácio (obs.: colégio carioca), expus minha vontade de levar práticas e conceitos da vida privada para a pública. Resolvemos ajudar na campanha de Fernando Gabeira, que seria candidato a prefeito pelo Partido Verde, no Rio de Janeiro. Decidi me aproximar, participando de algumas reuniões, e ao constatar a integridade de Gabeira, fiquei bastante animado. ‘Vamos tentar ajudar a eleger gente séria para a política’, pensei.

O “amigo com quem estudara no Santo Inácio” é Roberto Motta. Com uma simples busca textual na edição digital do Sem Atalho constato que “Motta” é palavra sequer mencionada por Amoedo em seu livro. Aconteceu com Motta praticamente o que os antigos romanos chamavam de damnatio memoriae, em que alguém tinha uma memória tão amaldiçoada que ela era apagada da história, algo parecido com a cultura de cancelamento atual.

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Custa a crer que alguém que se considera tão esclarecido e que tinha de fato uma carreira brilhante nas finanças não saiba sequer comparar Lula com Bolsonaro a ponto de ter desejado o PT de volta em 2022

O autor Donald Robertson conta que o imperador romano Marco Aurélio teve essa postura ao mencionar em suas Meditações diversas pessoas que o influenciaram. E a ausência notável era a de seu antigo tutor de retórica, Herodes Atticus, grande intelectual da era, e que foi ostensivamente excluído do livro. Os romanos, mais do que era dito, davam muita importância ao que não era dito. O silêncio dizia tomos para eles.

Ora, é fato notório e sabido que Motta foi um dos criadores do Novo. Mas, para Amoedo, a memória de Motta lhe era ofensiva e esse acabou sendo apenas um “amigo com quem estudara no Santo Inácio”, mencionado com nonchalance, apenas um pétit rien, um detalhe menor no Novo, algo que Motta não era.

Em outros trechos do livro, alguns colegas do Santo Inácio, como Michael Ditchfield e Carlos Alberto Ghazi, são mencionados pelo nome e sequer se sabe se de fato tiveram algum envolvimento efetivo com o Novo. Mas Motta, fundador do Novo, não mereceu menção no Sem Atalho. Para Amoedo, ele mereceu apenas o oblívio, virou “Aquele que não deve ser mencionado” ou a “Coisa”, como uma criatura sideral-mística saída da pena do escritor americano H. P. Lovecraft. Isso fala muito sobre Amoedo.

Voltemos ao restante do livro e à cronologia dos eventos. O livro começa com uma história de Amoedo sobre sua campanha presidencial em 2018. Falava Amoedo com o dono de uma fábrica de cimento e dele ouviu o seguinte, segundo trecho do livro:

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Eu gosto de você, mas vou votar no Bolsonaro. Porque a gente precisa tirar o PT - foi a fala do empresário.

Esse tipo de comentário estava se tornando frequente com a aproximação do pleito, e, naquele momento, virei para ele e perguntei:

Você disse que tem uma fábrica de cimento?

Isso.

Se você se afastasse da empresa por seis meses, deixaria o Bolsonaro cuidando dela em seu lugar? - Ele foi rápido e enfático na resposta:

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Não, imagina. De jeito nenhum.

E vai deixar o Brasil? - questionei. Como resposta, obtive apenas o silêncio.

Ora, administrar uma fábrica de cimento e ganhar uma eleição para presidente da República são coisas muito diferentes. A disputa presidencial poderia até ser reduzida a uma seleção de currículos e da escolha de administradores, mas não é. Passa pelos partidos, por seu controle, por alianças e pela capacidade de comunicação do candidato e seu carisma. Não é apenas a escolha do gerente de uma fábrica, ao contrário do que acredita Amoedo.

Os primeiros capítulos do livro falam de um jovem estudioso, de classe média, que conquistou boa formação, praticava esportes (um capítulo inteiro do livro sobre sua vida de esportista amador) e que teve uma carreira brilhante nas finanças. Mas o foco do livro é sobre política, sobre a criação do Novo e sua gestão nos primeiros anos de existência, ficando claro por onde Amoedo se perdeu. O livro é recheado de boas intenções. E de boas intenções, enfim... Ideia para problemas práticos do Brasil que é bom, nada.

Amoedo jura que não é e nunca foi dono de partido. Alguns elementos externos ao livro, contudo, desmentem isso. No próprio Os Inocentes do Leblon, de Roberto Motta, diversos episódios fazem saltar aos olhos que o Novo, até a saída de Amoedo, era seu feudo e seu projeto pessoal. Prova disso é a situação ocorrida com o candidato a vereador em São Paulo, Júlio Casarin, que teve que processar o partido por ter tido a sua campanha sabotada, como mostra o trecho de documento da ação citado em Os Inocentes: “Para espanto do autor, numa estratégia totalmente equivocada, que provou ser um tiro no pé, o partido começa a tratar filiados de forma “bovina”, dizendo em alto e bom som nas reuniões que ‘Aqui é partido que tem dono, manda quem pode, obedece quem tem juízo’. Isso era voz corrente nos encontros e o autor tem dezenas de testemunhas”. Eu poderia até contar algumas situações que vivi no meu período de filiado ao Novo, corroborando a visão de Casarin, mas é preciso evitar o amoedismo.

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Sem Atalho ainda peca pela falta de autocrítica de Amoedo. Uma crise que o Novo teve nos seus primeiros anos foi ter visto a eleição de um talentoso vereador na capital do Rio de Janeiro – Leandro Lyra, em 2016 –, e simplesmente sabotá-lo quando este cogitou se candidatar a deputado federal, em 2018. Lyra terminou não reeleito em 2020, e vimos um promissor talento sair da política.

Depois da eleição de Bolsonaro, em 2018, aparentemente, Amoedo foi tomado por um ódio visceral contra o presidente e, ao invés de apoiar o que dava certo em seu governo e que ia na linha do que o Novo apoiava (como aprovação da Reforma da Previdência e a privatização da Eletrobrás), Amoedo se tornou um opositor intransigente. O próprio Novo percebeu que o partido estagnou nas mãos de Amoedo e houve por bem ajudá-lo a encontrar seu rumo fora da agremiação.

A vida política de Amoedo após o Novo é irrelevante, salvo os tuítes bombásticos e comentários que ele faz na imprensa e que são usados para fustigar Jair Bolsonaro, que se tornou a bête noire de Amoedo, sem que haja algum motivo concreto para isso. É de se perguntar até se Bolsonaro já ouviu falar de Amoedo alguma vez na vida e, em tendo ouvido, temos certeza que ele, político calejado e casca-grossa, jamais perdeu um minuto de sono pensando em Amoedo. Para ignorá-lo seria preciso pensar nele, parafraseando o sábio.

Mas Amoedo declarou voto para Lula em 2022 e declara que será “forçado” a votar nele de novo em 2026. Essa postura de Amoedo foi uma traição para quem um dia acreditou no projeto do Novo. O candidato presidencial do Novo, em 2018, declarou voto em Lula e topou ser uma pecinha da farsa da “Terceira Via” (Terceira Via que era Lula, sempre foi, como provamos no artigo anterior, que analisou o penoso livro 100 Vozes pela Democracia).

Custa a crer que alguém que se considera tão esclarecido e que tinha de fato uma carreira brilhante nas finanças não saiba sequer comparar Lula com Bolsonaro a ponto de ter desejado o PT de volta em 2022. Gostaria que ao menos a leitura de Sem Atalho permitisse ao leitor compreender o Amoedo real e nos deixasse vislumbrar essa virada de sua casaca rumo ao lulismo. Livros bons e até ruins permitem isso, se seus autores forem transparentes em seus propósitos. Não bons, decentes ou honestos, mas transparentes.

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Ninguém larga a leitura do Mein Kampf sem vislumbrar o mal contido em Hitler e seu projeto genocida. Até o Manual do Guerrilheiro Urbano se presta a ser uma radiografia honesta de quem foi Carlos Marighella. Ninguém pode falar que seu autor queria o bem da humanidade com o livro. Já o Sem Atalho traz um retrato de João Amoedo soterrado sobre quilos de “pancake” de maquiagem de bom mocismo.

Quem é o Amoedo real? O criador de um partido que viria dar força ao indivíduo e pregar a responsabilidade de cada um por seus atos? Ou um coadjuvante tardio de Lula, que sequer ganhou a sua confiança para participar de seu governo?  Enfim, como já foi dito pela grande imprensa na época do lançamento da autobiografia de Amoedo, não é possível entender porque Levy Fidelix ou Eymael se dariam ao trabalho de lançar um livro contando suas histórias. Eles jamais o fizeram. Amoedo ousou fazer. Um livro de piadas teria sido melhor. Aliás, vocês conhecem aquela: “Dois donos de partidos entram em um bar...”.

Nota – No meu último artigo publicado aqui na Gazeta eu fiz uma resenha do livro 100 Vozes pela Democracia. E os leitores também sabem que excelente reportagem de Marlice Pinto Vilela revelou que o Ministério Público Federal, por força de representação de minha autoria, irá investigar a edição do livro feita pelo Senado Federal por meio de um inquérito civil ).

Pois bem. Um presidenciável do Novo, Luiz Felipe D’Ávila, participou do livro 100 Vozes pela Democracia e, recentemente, falou sobre o seu próprio livro e de como ele quer unir a “direita sensata com a esquerda moderada”, ou algo assim. E se eu lhes contar que o Senado, ao responder à procuradora da República, que oficia no agora inquérito civil, usou o bom nome de D’Ávila para falar que a obra obedece, sim, ao pluralismo político, eis que o mencionado senhor é filiado ao Novo, que seria um partido de direita? Enfim, no meu artigo anterior citei Anatole France e afirmei que só havia variações de esquerda no livro. Aí vem D’Ávila e participa do livro só para me “desmentir”. Ou teria ele sido usado, como o proverbial “pato no jogo de pôquer”, sendo uma direita de conveniência?

As coisas fazem seu círculo completo e assim como no artigo atual demonstro o estrago que Amoedo fez na direita com sua adesão ao lulismo, vemos que o Novo, mesmo sem Amoedo, ainda precisa de correções drásticas, sob pena de ser usado pelos seus atuais mandatários como uma linha auxiliar da esquerda.

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Luiz Augusto Módolo de Paula é advogado, bacharel, mestre e doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP e jornalista. Escritor, autor de “Genocídio e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda” (Appris, 2014), “Resolução de Conflitos em Direito Internacional Público e a Questão Iugoslava” (Arraes, 2017), “A Saga de Theodore Roosevelt” (Editora Lisbon International Press, 2020), “O Jugo da Histeria no Brasil Ocupado” (2021) e de “Teddy Roosevelt para Crianças” (2022) – os dois últimos editados pela Arcádia Educação e Comércio Ltda e escritos em parceria com Lílian Cristina SchreinerMódolo. Instagram: @luizaugustomodolo. X(Twitter): @LAModolo.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]