O confronto entre oposição e governo a respeito da CPI do Apagão Aéreo ignora um problema de suma gravidade: a defesa do cidadão. Os bate-bocas regimentais sobre o "fato determinante" para justificar a convocação de uma CPI revela um assombroso desprezo dos representantes do povo pelas angústias dos representados.
É preciso não esquecer que a crise no setor aéreo, a primeira em sua história, escancarou-se em seguida à maior tragédia nos céus brasileiros. O desastroso empenho nos primeiros momentos em politizar o desastre só serviu para magnificar suas conseqüências impedindo que fossem desativadas algumas de suas causas.
Por falta de um debate consistente, continuado, e por força desta irracional politização, o que seria uma crise latente transformou-se ao longo de um melancólico semestre numa emergência nacional. Nossa aviação civil perdeu a sua confiabilidade, essa a grande verdade: mesmo quando não ocorrem panes e não se instala o caos nos aeroportos do país, o cidadão embarca num avião e já não sabe qual o dia e a que horas chegará ao destino. Cem anos depois do primeiro vôo de Santos Dumont, viajar de avião no Brasil equivale a participar de uma dramática loteria.
É um escárnio aos 154 mortos e à dor dos seus familiares este esforço para engavetar, manipular ou disfarçar a discussão sobre a segurança de vôo e o controle do tráfego aéreo. O formato desta discussão é irrelevante: se a coalizão que hoje governa o país decidiu que o assunto não cabe numa CPI, que invente uma alternativa. Existem muitas. Mas é imperioso que a discussão seja aberta, pública, em veículos de comunicação de massa. Inadmissível esta hipócrita e silenciosa insensibilidade diante de uma tragédia que, se não for imediatamente encarada, corre sério risco de repetir-se.
Mesmo que as autoridades ainda não tenham emitido o relatório final sobre as causas da colisão entre um jato de passageiros e um jatinho executivo no dia 29 de setembro de 2006 não se pode passar a borracha numa evidência: dias depois, um número não revelado de controladores de vôo internou-se para tratamento nervoso. Qual a razão deste abalo psicológico, o que teria produzido esta inusitada comoção coletiva e por que, logo em seguida, iniciou-se o movimento dos controladores de vôo sediados em Brasília exigindo condições de trabalho compatíveis com a responsabilidade de proteger tantas vidas?
O primeiro escalão do governo não viaja em aviões de carreira e, nas últimas semanas, os militantes da coalizão governamental preocupados em faturar cargos, verbas e salários, passaram mais tempo em Brasília do que em suas bases eleitorais. Por isso, ignoram o tema dominante nas salas de espera dos aeroportos, não ouvem os comentários dos pilotos que, obrigados a dar satisfações aos passageiros nas pistas ou no ar, produzem candentes libelos contra a criminosa inércia.
Problema das elites? Engano: a massificação e a democratização do transporte aéreo no Brasil transformaram nossas aeronaves em verdadeiras vitrines do processo de mobilidade social. Governo e oposição precisam saber que os balcões de check-in e esteiras de recolhimento de bagagens neste exato momento estão transformados em palanques de cidadãos muito articulados, alheios a jogadas partidárias e profundamente indignados com a agressão aos seus direitos.
Desapareceu do léxico do viajante aéreo o "céu de brigadeiro" cada viagem é uma incógnita e, mesmo quando completada sem alterações, deixa um imponderável saldo de estresse. Como sempre, nossos parlamentares pairam completamente alheios às tempestades.
Emplacar ou impedir uma CPI sobre o chamado apagão aéreo tornou-se irrelevante. Este é um placar que não conta na vida real. O que conta é esta revolta no ar: cada vôo, cada avião tornou-se uma Bastilha que brioches ou barras de cereais já não podem acalmar. Senhores deputados, excelências: esqueçam o painel eletrônico dos plenários, atenção às turbulências e apertem os cintos.
Alberto Dines é jornalista.
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