Governo planejava autorizar estudos para incluir unidades básicas de saúde em plano de concessão à iniciativa privada. Gesto foi entendido pela oposição um movimento de privatização do SUS.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
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Em 27 de outubro o governo federal publicou o Decreto 10.530, e nele as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) foram incluídas no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), que visa estimular o fortalecimento dos laços entre Estado e iniciativa privada. Imediatamente, várias vozes afirmaram que estaria a atenção primária à saúde sendo privatizada. Mas as coisas não se confundem!

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O decreto (revogado em 28 de outubro) estabelecia a possibilidade da realização de estudos de alternativas e parcerias com a iniciativa privada para a construção, modernização e a operação das Unidades Básicas de Saúde. A inclusão desse tema no PPI permitiria ao Ministério da Saúde definir diretrizes para a adoção e implantação dessas parcerias, sendo facultada aos estados, Distrito Federal e municípios a adesão ao modelo. Não havia novidade alguma, uma vez que qualquer ente federativo já pode firmar parcerias público-privadas para a gestão e execução de ações da saúde.

Não se trata de privatizar o SUS, muito menos de acabar com seus principais fundamentos, especialmente com o acesso universal. Trata-se, sim, de se encontrar alternativas de aperfeiçoamento do sistema de atenção primária à saúde, visando a melhoria do acesso e da qualidade dos serviços prestados, experiência que, inclusive, já pode ser vista em alguns municípios brasileiros que adotam (e com sucesso) em alguns serviços as Organizações Sociais de Saúde (OSS), inclusive em Curitiba.

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Em nenhum momento o decreto delega as funções do serviço de assistência à saúde ao setor privado, como alguns pretendem afirmar. Alguns por pura má-fé, outros por desconhecimento de como essas parcerias funcionam na prática. Trata-se, sim, de busca de modelos mais eficientes de gestão – tão necessários ao SUS – que possam garantir um serviço de melhor qualidade e adaptado às peculiaridades locais.

Assim, embora fosse do PPI a coordenação da busca e definição de modelos de negócios, especialmente no caso das UBS abandonadas ou inacabadas e construção de novas unidades, caberia exclusivamente ao Ministério da Saúde e secretarias de Saúde a condução das respectivas políticas públicas. Não haveria sobreposição nem usurpação de competências, nem tampouco ameaça ao SUS.

Friso mais uma vez: o modelo, se bem executado, não gerará o desmantelamento do SUS, nem sua desconstrução. Trata-se de um passo além daquele que já foi dado com o desenvolvimento das Organizações Sociais de Saúde, ampliando a possibilidade de parcerias com a iniciativa privada.

Sim, a preocupação externada por alguns médicos de que o modelo não serve para algumas ações da política nacional de saúde, porque essas não interessariam à iniciativa privada, é verdadeira. Mas querer afastar de imediato a possibilidade apenas com esse argumento não é lógico. O decreto deixava evidente a necessidade de estudos que definissem modelos de gestão. Portanto, claro estava que esses mesmos estudos deveriam indicar a que situações podem ser aplicados e quais ações deveriam ser mantidas exclusivamente sob responsabilidade do setor público. Até mesmo porque órgãos de controle externo exigiriam estudos dos entes que desejassem adotar os novos modelos, justificando a sua necessidade e a economicidade da medida.

De qualquer forma, é importante destacar que a adoção de novos modelos de gestão na área da saúde não pode vir dissociada de estudos sanitários. Eles devem se complementar para garantir a seriedade das medidas e a sua completa aderência às necessidades locais. Sem essa integração, impossível afirmar o sucesso de qualquer novo modelo.

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O fato de a Constituição Federal determinar ser dever do Estado garantir o direito à saúde (artigo 196) não exclui a possibilidade de adoção pelo SUS de novos modelos, inclusive que decorram de parcerias privadas. O arcabouço normativo já existente é suficiente para garantir ao gestor público a escolha da melhor alternativa para a sua realidade. Portanto, não há como confundir essas parcerias com privatização: seus fundamentos e alcance são bem distintos.

É necessário que tanto gestores quanto órgãos de fiscalização entendam realmente os modelos e ferramentas existentes para que as decisões sejam as mais acertadas possíveis, viabilizando o pleno exercício do direito à saúde, a suficiência e viabilidade de todo o sistema.

Não parece, portanto, ser razoável afirmar que a execução de alternativas de gestão traga qualquer risco ao SUS ou à garantia do acesso gratuito aos serviços de saúde. O que se pode afirmar é que não há fórmulas mágicas para a melhoria dos serviços públicos. Essa melhoria só virá quando alternativas que promovam a plena integração entre os critérios econômicos e sanitários forem adequadamente operacionalizadas.

Fernanda Schaefer, pós-doutora em Bioética e doutora em Direito, é coordenadora da pós-graduação em Direito Médico do Unicuritiba.