A universidade pública brasileira deveria ser um lugar de debate, de confronto de ideias, de discordâncias civilizadas. Mas não é. Infelizmente, é um lugar de discurso único, de uma só ideologia, do monólogo. Não há espaço para o contraditório. Nem mesmo para questionamentos, que são a base do desenvolvimento da Ciência.
Sou professora em uma universidade pública do estado do Maranhão. Estes dias usei um artigo de Roberto Motta, publicado no jornal Gazeta do Povo, para discutir textualidade em uma turma de um curso ligado às ciências sociais. Achei que o debate sobre violência urbana, materializado num texto bem escrito, tivesse a ver com a área do curso e com a disciplina. Analisaríamos a construção dos argumentos, por exemplo, ou os elementos de coesão do texto.
Se ideias são criminalizadas, já abandonamos há muito tempo a pluralidade de pensamento, o livre debate, a liberdade de cátedra e de opinião. Se apenas alguns discursos são permitidos, é porque já existe o silenciamento
Fui surpreendida com reações de insatisfação que foram do protesto – porque o texto não condizia com a ideologia do aluno – à saída de sala com pezinhos batendo no chão, porta fechada com violência e cobranças acerca da maneira como devo conduzir as minhas aulas, que planejo, executo, leciono com esforço e conhecimento.
Achei que não precisasse explicar aos alunos de uma universidade pública que um texto não os obriga a pensar de determinada forma, mas tive que fazê-lo, porque não se dão o trabalho nem sequer de compreender isso: se o texto não está de acordo com sua ideologia, dizem eles, deve ser proibido. Um simples texto se torna uma ameaça, em vez de suscitar curiosidade e interesse pelas informações novas.
Em 2022, por razão semelhante, alunas de outro curso foram à Ouvidoria da universidade em que leciono reclamar que eu tinha levado um artigo de Olavo de Carvalho e outro de Luiz Felipe Pondé, para usá-los em sala de aula. Tive que responder o óbvio ao chefe do Departamento e à pró-reitora de Graduação, que prontamente vieram me inquirir acerca do caso. Estamos na época em que é preciso dizer que a grama é verde. Se ideias são criminalizadas, já abandonamos há muito tempo a pluralidade de pensamento, o livre debate, a liberdade de cátedra e de opinião. Se apenas alguns discursos são permitidos, é porque já existe o silenciamento na universidade pública.
Haveria, para mim, um espaço feliz na universidade pública se eu fosse (ainda) de esquerda. Mas, como um dia ousei sair da caverna e ver o mundo como ele é, o que me sobra é a hostilidade. Sou professora, mas meus conteúdos, textos, falas e iniciativas são continuamente julgados e violentados por causa da maneira como vejo a sociedade, a economia, as leis, a religião, o identitarismo, o socialismo e todo o lixo que chamam de revolucionário. Não posso criticar. Se eu fosse favorável ao massacre de 150 milhões de pessoas no século XX, com o agravante da privação de liberdade de outras tantas, bem como da censura, da perseguição religiosa e outros horrores, eu seria parte do grupo. Eu seria “inteligente”.
Mas estou aqui, tendo que dizer o óbvio. Os textos que levo para leitura em sala são de gêneros diversos, e podem incluir artigos de opinião – é o caso do texto A Lei Gabriel Mongenot: audiência de custódia precisa mudar, de Roberto Motta, publicado em dezembro do ano passado. O mesmo ocorre com Educação ao Contrário, do filósofo e escritor Olavo de Carvalho, que costumo analisar e resumir em sala. O conteúdo do texto é discutido em face de sua estrutura, dos elementos que operam os critérios de coesão textual, das excelentes estratégias argumentativas, da coerência e outros.
Sinal dos tempos, é preciso dizer que a universidade é lugar onde estudam e trabalham pessoas adultas, que deveriam saber lidar com o contraditório e argumentos diferentes dos seus, mas não é isso o que se observa no comportamento de alguns alunos, hoje, e nas denúncias feitas em 2022 contra mim. É preciso dizer que não são todos os alunos que se sentem incomodados com a leitura de textos de Roberto Motta e Olavo de Carvalho. Apenas alguns, em uma turma de cerca de 40, se levantam para dizer à professora os textos que ela deve ou não levar para a sala de aula. Os temas que devem ou não ser debatidos. As teorias que não podem ser questionadas. As ideias que devem ser proibidas. Do que têm medo?
Tenho liberdade de cátedra para escolher os textos que julgo mais apropriados, cuja construção, penso eu, agrega conteúdo à teoria do texto. Assim como levei textos de Roberto Motta e de Olavo de Carvalho, também levei do poeta Ferreira Gullar, do escritor Jorge Luís Borges e de outros tantos. Um dos textos de que gosto muito e que quase sempre levo para leitura na disciplina Leitura e Produção Textual é O brinquedo francês, de Roland Barthes, conhecido por sua militância socialista nos anos 1960, 1970 e 1980, o que, evidentemente, não significa que sou socialista. Para falar de progressão com tema constante, gosto de usar a letra da música Você, de Omara Portuondo e Maria Bethânia. Já a letra da canção A Banda, de Chico Buarque, traz um ótimo exemplo de progressão com rema constante, e eu a utilizo em minhas aulas, na mesma disciplina, com os mesmos alunos.
Não se trata de direcionar ideologicamente textos, mas de escolher aqueles que são mais bem escritos, a fim de trabalhar sua estrutura com os alunos em sala de aula. Mas me deparo com uma vigilância constante: os textos que uso, as opiniões que professo e as crenças que cultivo passam pelo crivo do emburrecimento geral. Alguns são “permitidos”, outros não. Por que simplesmente não argumentam? Há teorias que não podem nem mesmo ser contestadas, ainda que haja base para a crítica, porque já saímos do campo da ciência e entramos na área do dogma.
É sinal dos tristes tempos em que vivemos a tentativa de cerceamento à liberdade de cátedra e de expressão de uma professora, sobretudo porque sei exatamente o conteúdo que estou levando à sala de aula, com aulas planejadas, fundamentadas em vasta teoria e que tento fazer com que sejam interessantes, provendo os alunos de slides, textos, vídeos selecionados, planejamento de aula digitado e impresso, participação em eventos...
O planejamento de minhas aulas está à disposição de quem quer que seja: no primeiro dia de aula, entrego aos alunos um documento com ementa, programa, cronograma, sistema de avaliação, bibliografia sugerida etc. A universidade é pública, não faço nada em segredo, ao contrário de muitos da comunidade universitária. Também são públicos os textos que utilizo, os slides apresentados e a teoria neles veiculada, correspondente à ementa e ao programa da disciplina em questão, rigorosamente cumpridos por mim.
Os artigos de opinião objetos de queixa costumam ser publicados em jornais de grande circulação no país. Gosto dos textos de Roberto Motta porque eles apresentam temas emergentes na área das Ciências Sociais: a violência, a criminalidade e estudos referentes a essas áreas. A propósito, qualquer turma para que leciono recebe, no dia anterior a cada aula, o planejamento de cada um dos horários a ser cumpridos. Também recebem, via internet, todos os textos em PDF, que muitas vezes digitalizo eu mesma, em meu escritório. Causam espanto e revolta a alguns apenas os textos que divergem da ideologia da esquerda.
Acrescento que o debate sempre está aberto em minhas aulas. Costumo dizer que os estudantes têm toda a liberdade para discordar de mim, mas que isso seja feito de modo adulto, com respeito. Acredito que o diálogo entre diferentes é possível e desejável, sobretudo na Academia. Aliás, essa é a própria essência da Ciência. Valorizo o fato de os alunos defenderem seus pontos de vista. Valorizo também meu direito de expor o meu, sobretudo em resposta a algo dito em sala de aula. Não me calo nem vou baixar a cabeça para pequenos egos que acham que têm a obrigação de combater não uma ideia, mas uma pessoa. Ideias se combatem com debate. Pessoas, com repressão. Em nome disso há adolescentes presos em Cuba: foram às ruas protestar porque não há comida e eles não têm emprego, não podem sair do país, não há nada a ser feito além de se conformar e morrer de fome. Eu não me conformo.
Diante disso, reafirmo que a CF assegura a liberdade de expressão, crença, cátedra, opinião, e dispõe, em seu artigo 5º, inciso VIII, que é vedada a privação de direitos em decorrência de crenças pessoais (religiosas, científicas ou filosóficas). A legislação brasileira garante a liberdade de cátedra dos professores, conforme está escrito na Constituição Federal: Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; (…)”.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9.394/96, assegura: “Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância; (…)”. Também na Constituição Federal, lemos, no inciso IX do artigo 5º: “IX – É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
É uma tragédia moderna que os alunos tenham deixado de lado a inteligência e a capacidade de discussão a ponto de já não serem capazes de pensar, mas apenas de sentir, porque ideias que ameaçam seu porto seguro são tomadas como agressões pessoais.
Mayalu Felix é graduada em Letras pela Universidade de Brasília, é mestre e doutora em Ciências da Linguagem pela Université de Nanterre Paris Ouest La Défense e doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Há 20 anos é professora da Universidade Estadual do Maranhão, lotada no Departamento de Letras.
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