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Vamos admitir que a história da vacina não começou bem. Na Inglaterra vitoriana, um médico chamado Edward Jenner, baseado em uma prática já conhecida como variolização e observando que os criados que ordenhavam vacas, ao entrar em contato com animais doentes, desenvolviam uma doença localizada e menos grave que a varíola, resolveu inocular o pus das lesões que ocorriam no ubre das vacas em um órfão de 8 anos. Para o alívio de todos, o menino não ficou gravemente doente e não teve varíola, apesar de exposto a humanos com a doença.

Obviamente ainda não existiam comitês de ética em pesquisa, mas o interessante é que, se assim fosse, provavelmente o experimento seria aprovado. Era o modo de pensar o trato com as vulnerabilidades na época, com a agravante de que a varíola acometia e matava mais da metade dos europeus que não eram crianças, nem órfãos. Conta-se que, por causa do achado de Jenner, o governo da Bavária obrigou todos os seus cidadãos a receberem a tal preparação obtida das vacas. Esta foi provavelmente a primeira campanha oficial de vacinação da história.

De lá para cá, muita coisa mudou e, na década de 70, graças a programas globais de imunização, a varíola foi erradicada do planeta. Trata-se de um feito tão extraordinário que muitos dos brasileiros com menos de 40 anos nem sequer sabem o que é varíola.

Radicalismo e arrogância andam de mãos dadas

Jenner morreu sem conhecer o mecanismo biológico que levava à proteção das pessoas que ele inoculava. Tais mecanismos somente começaram a ser elucidados por Louis Pasteur mais de um século depois.

Hoje, o modo de ação das vacinas de todos os tipos está amplamente elucidado. Aplicadas lá e cá, têm sido usadas com eficiência para prevenir e controlar epidemias importantes. Não se pode ignorar o pânico causado pela recente epidemia de Influenza A (H1N1), assim como não há como negar o alívio que sentimos pela descoberta de uma vacina para prevenir esta doença.

Como são intervenções na natureza, a maioria dos tratamentos médicos – entre eles as vacinas – pode causar danos e, sendo assim, a decisão sobre a pertinência de sua aplicação passa pela apreciação dos prós e dos contras. Nesta avaliação, o pragmatismo da estatística é que orienta a nossa decisão. Talvez o problema resida em aceitar que tudo tende a funcionar bem, mas que os raros “contras” podem afetar justamente a si ou a um ente querido seu.

Leia também:Por que não vacinar contra a epidemia de dengue? (artigo de Luciano Ducci, publicado em 22 de abril de 2016)

Radicalismo e arrogância andam de mãos dadas. A interdependência entre o significado destas palavras é absolutamente notável. Neste contexto, a ciência, por buscar eternamente a verdade, deve se contrapor à arrogância, que é a autopercepção de que a verdade foi encontrada. O arrogante se acredita livre e independente, mas não percebe que é um mero escravo de suas convicções.

O direito à informação é incontestável, assim como o posterior dever de usá-la com sensatez, sem radicalismo. Ignorar os benefícios e os riscos da vacinação é um equívoco. Deixar de considerá-los de forma isenta é muito pior. Assim, você está enganado se acha que este texto é sobre usar ou não uma vacina. Ele fala da busca pela verdade. E sobre o perigo de achar que ela definitivamente foi encontrada.

Sergio Surugi de Siqueira, doutor em Fisiologia, é decano da Escola de Ciências da Vida da PUCPR e membro titular da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
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