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Entre as vítimas da pandemia da Covid-19, podemos incluir o debate racional sobre saúde pública. A polarização política, que já vinha numa ascendente no Brasil desde 2014, ficou ainda mais acirrada ao longo daquele estranho ano de 2020. O “nós contra eles” substituiu o “nós contra a doença”, e contaminou a atitude das pessoas em relação ao alcance e a gravidade do coronavírus, além das medidas adotadas para combatê-lo. De um lado, vimos o negacionismo quanto ao risco do vírus e a negligência em relação à importância da vacinação. Do outro, tivemos o alarmismo injustificado que manteve as escolas fechadas por mais de um ano.
A pandemia ficou para trás, mas esse cenário permanece. Agora a divisão se repete em torno da obrigatoriedade da vacina da Covid-19 para crianças. Prefeitos e governadores de várias regiões do país decidiram que as escolas não deveriam exigir a vacinação contra a Covid-19 para realizar a matrícula. Foram imediatamente taxados de “bolsonaristas”. Do outro lado, seus adversários políticos entraram na Justiça contra essas medidas, como se elas estivessem condenando as crianças à morte. Muita polarização, pouca argumentação racional sobre a necessidade, a eficácia, os riscos e os custos envolvidos.
A vacina da Covid-19 para crianças tem um impacto na saúde pública muito menor, que não pode ser comparado ao das vacinas tradicionais do Programa Nacional de Imunização.
Diferente de 2020, hoje não enfrentamos uma pandemia global que nos obriga a tomar decisões rápidas com informação limitada. Há pesquisas publicadas para embasar tanto políticas públicas quanto decisões individuais. Não há dúvidas de que a vacinação contra a Covid-19 foi muito importante para conter a doença e evitar mortes. Mas não é preciso ser “bolsonarista” ou “antivax” para questionar a obrigatoriedade do imunizante para crianças. Basta examinar os argumentos deixando as vendas da ideologia de lado.
Uma das razões levantadas por quem defende a vacinação compulsória é a proteção das próprias crianças: devemos obrigá-las a tomar a vacina para protegê-las da doença. Seria uma medida válida caso a Covid-19 fosse uma doença perigosa para crianças e adolescentes. Mas nesse ponto os dados são conclusivos: a população infantil raramente é afetada de forma grave pela doença, e a taxa de mortalidade é muito baixa. Um estudo calculou a média da Taxa de Letalidade por Infecção em diferentes faixas etárias, e o grupo de 0-19 anos teve uma taxa de 0,0003%. Como comparação, esse valor é de 0.123% no grupo de 50-59 anos e 0.506% no grupo de 60-69 anos.
Crianças com comorbidades graves enfrentam um risco maior, o que nos leva para a outra razão levantada para a vacinação obrigatória: o bem coletivo e a proteção dos outros. Os não-vacinados representariam um risco para as outras crianças, circulando e transmitindo o vírus. Esse argumento é o mais comum, mas também esbarra nas evidências. Em primeiro lugar porque a vacina contra a Covid-19 não é esterilizante. Ela não impede a transmissão ou a infecção, vacinados e não-vacinados podem pegar e transmitir a doença. O principal benefício da vacina é garantir que ela não evolua para quadros graves, o que, como vimos, já é raro em crianças. Em segundo lugar, as crianças não são um vetor importante na cadeia de transmissão da doença. A maior parte das crianças se infecta no contato com os adultos com os quais convive. Vacinar os adultos é uma medida mais eficaz para proteger as crianças, mas isso não vai ser atingido proibindo matrículas na escola. A vacina também é eficaz na proteção individual das crianças com comorbidades, o que diminui ainda mais a necessidade de obrigar a vacinar todas as crianças.
Nada disso é novidade, e esse entendimento já foi incorporado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em março de 2023, o Grupo Estratégico de Imunização (SAGE) da OMS atualizou o guia de vacinação para a Covid-19, incluindo crianças saudáveis como grupo de “Baixa prioridade”. O veredito é claro: a vacina da Covid-19 para crianças tem um impacto na saúde pública muito menor, que não pode ser comparado ao das vacinas tradicionais do Programa Nacional de Imunização, como as do sarampo e da poliomielite. Outra nota técnica, também da OMS, afirma que “as exigências [de vacinação] não devem resultar na negação da educação para crianças não vacinadas a fim de respeitar o direito de cada criança à educação”. Em linha com essas recomendações, a maioria dos países não exige a vacinação infantil.
Somando o benefício limitado da vacina em termos de saúde pública ao risco baixo, porém real, de reações adversas (particularmente o risco de miocardite em jovens do sexo masculino de 12 a 17 anos), e considerando o quadro controlado de casos da doença em 2024, não há justificativas suficientes para torná-la obrigatória.
Os pais que optarem por não vacinar suas crianças contra a Covid-19 devem ter sua liberdade respeitada, com a garantia de que seus filhos vão poder frequentar a escola sem problemas. Os pais que optarem por vacinar suas crianças contra a Covid-19 também devem ter sua liberdade respeitada, e entender que os coleguinhas não-vacinados não representam nenhum risco a mais – a vacina confere proteção individual, mas não necessariamente previne infecção ou transmissão.
Numa democracia, o convencimento deve sempre se sobrepor à coerção. Só assim é possível reconstruir a confiança nas instituições e reintroduzir o debate racional sobre políticas públicas.
Eduardo Ribeiro é bioquímico e presidente do partido Novo.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos