Entenda-se “vida intelectual” não como atividade acadêmica, nem mesmo como vida de estudos, mas como a busca continuada da verdade em relação a certos problemas. Esses problemas devem ter uma importância vital para nós e, idealmente, um alcance universal.
Ensina Olavo de Carvalho que é da natureza do poder intelectual funcionar no muito longo prazo. Raramente um filósofo vive o suficiente para ver os frutos, bons ou maus, do seu esforço. As sociedades complexas necessitam de intelectuais que pensem nos problemas reais em profundidade, mas quem faz esse trabalho é frequentemente desprezado ou repudiado. Existe sempre uma “Cassandra” que, como a filha do rei de Troia amaldiçoada por Apolo, está condenada a conhecer a verdade, mas impedida de que outras pessoas acreditem nela.
A filosofia também tem de lidar com esta recusa do conhecimento. Heráclito dizia que seu discurso (logos) podia expressar como as coisas se passam, mas, ainda assim, as pessoas não iriam entendê-lo. Sócrates foi mais adiante e teve verdadeiros interlocutores, mas a sua maiêutica foi tão incômoda que ditou a sua morte. Platão, na famosa “alegoria da caverna”, exprime simbolicamente a tensão entre o indivíduo que ascende até a luz do conhecimento e a recusa de outros em receber aquela verdade.
A recusa do conhecimento é estrutural no ser humano
O intelectual não visa apenas o bem das gerações futuras, sendo também guiado e motivado pela luz do conhecimento. Diz Aristóteles, no início da Metafísica, que “todos os homens, por natureza, tendem ao saber”. Ele está a pensar em sensações, como a visão, que são o início do conhecimento prático, que pode depois originar o conhecimento pelas causas, propriamente humano. Por outro lado, ele considerava a felicidade, entendida como ação virtuosa, como a finalidade da vida humana. São felizes as pessoas que têm ócio e se dedicam à vida contemplativa. De forma mais dramática, Sócrates disse que “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”.
Em suma, estes sábios ensinam-nos que o ser humano não nasceu para ter uma vida meramente animal, mas para ascender ao conhecimento, que deve ser, ao mesmo tempo, autoconhecimento. Contudo, também sabiam que a recusa do conhecimento é estrutural no ser humano. A vida intelectual propriamente dita é para aqueles que se instalam na tensão entre estas duas tendências antagônicas e que colocam a busca da verdade como eixo central das suas vidas, em redor do qual giram todos os outros interesses. Dedicam-se a isto aqueles que não podem fazer outra coisa, parafraseando Ortega y Gasset.
No mesmo sentido, o padre Sertillanges fala da vida intelectual, no livro de mesmo nome, como uma vocação, que “não se satisfaz com leituras vagas nem com pequenos trabalhos dispersos. Requer penetração, continuidade e esforço metódico, no intuito duma plenitude que responda ao apelo do Espírito e aos recursos que lhe aprouve comunicar-nos”. Essa vocação não equivale a uma profissão, mas é aquilo que produzimos nas nossas melhores horas e com o nosso melhor coração. Duas horas por dia bastarão para manter uma vida intelectual, se bem aproveitadas. Não é necessário ter um intelecto superior, basta que seja um pouco superior à média. O fundamental é querer o que a própria verdade quer. Mas como sabemos se temos um chamado para a vida intelectual? O padre Sertillanges diz que é necessária uma longa reflexão e ser dócil com Deus e com nós mesmos, para conseguirmos ouvir estas duas vozes, que nos indicam qual o caminho a trilhar.