“Não há espaço para grandes mudanças”, disse o prefeito Gustavo Fruet em março de 2014, numa afirmação desalentadora para o início da revisão do Plano Diretor de Curitiba. Hoje, especialmente após as emendas na Câmara dos Vereadores, fica o desejo de que realmente seria melhor não ter mudado nada.

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A prefeitura e o Ippuc sempre tiveram uma relação amistosa com o setor imobiliário. No máximo, houve um esforço por parte da administração municipal em domesticar o setor pela oferta de algumas vantagens seletivas, como a destinação de áreas onde pudesse se desenvolver plenamente e de garantias de regulações que afastassem os riscos de desvalorização dos imóveis. Conseguiram, assim, combinar alguma organização do território com a segurança de lucros contínuos para o setor imobiliário.

Por meio de emendas apresentadas pelos vereadores, o lobby do setor imobiliário praticamente desorganizou o planejamento e o ordenamento do uso do solo da cidade no processo de revisão do Plano Diretor. Antecipando discussões do zoneamento, que obviamente merece justíssimas críticas na medida em que foi historicamente um instrumento indutor da segregação espacial em Curitiba, apresentaram propostas que aprofundam ainda mais desigualdades e reforçam o direito à cidade como privilégio.

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A relação diretamente proporcional e de causalidade exclusiva entre verticalização e adensamento é parcialmente falsa

Há emenda pela anulação tácita do zoneamento com a regularização de qualquer edificação em desacordo com a lei mediante pagamento de multa. Há outras que instauram diversas flexibilizações sempre acompanhadas da suposta compensação por aquisição de potencial construtivo. Com essas medidas, os parlamentares praticamente destituem o poder da prefeitura na regulação do solo e esvaziam a centelha de bom senso que ainda restava nesse processo.

Regra geral, o parlamento se apoia em um mantra mítico entoado continuamente pelo setor imobiliário: Curitiba não tem mais espaço e é preciso verticalizar para acomodar a população. Seu corolário seria o aumento do coeficiente de aproveitamento (que define a área que pode ser construída no lote), a incorporação de novas áreas não computáveis e a ampliação das possibilidades de aquisição de potencial construtivo. Em outras palavras, conseguir a permissão para construir o máximo possível nos lotes disponíveis.

Contudo, a relação diretamente proporcional e de causalidade exclusiva entre verticalização e adensamento é parcialmente falsa. O que se comprova cientifica e estatisticamente são outras duas relações: entre verticalização e lucro imobiliário e entre preço do imóvel e adensamento. Na primeira relação, considerados os limites de tecnologia construtiva, quanto maior a verticalização, maior o lucro, principalmente porque se dilui cada vez mais os custos fixos da incorporação – em outras palavras, o preço da terra. Na segunda relação, porque no Brasil a renda ainda é fortemente concentrada, a proporção é inversa: quanto maior o preço do imóvel, menor o adensamento.

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Os bairros populares, como o Sítio Cercado, são razoavelmente adensados (102 habitantes por hectare) apesar de não serem verticalizados e de terem baixo coeficiente de aproveitamento. Já os bairros como o Bigorrilho, altamente verticalizados, apresentam praticamente o mesmo adensamento (97 hab/ha). O que difere significativamente é a relação entre área liberada para construção e o número de moradores: no Sítio Cercado são apenas 18 m²/hab enquanto no Bigorrilho são 94 m²/hab. Ou seja, um morador do Bigorrilho dispõe de cinco vezes mais área construída que um morador do Sítio Cercado. E é importante lembrar que o preço do metro quadrado de um imóvel no Bigorrilho também é quase o dobro do preço no Sítio Cercado.

Portanto, a verticalização não resulta em maior adensamento porque não ataca o coração do problema, que é a relação entre o custo do imóvel e a renda do cidadão no acesso à moradia. Essa era a questão central sobre a qual todos os que participaram da revisão do Plano Diretor deveriam ter se debruçado, e essa era a mudança de que Curitiba precisava. Mas isso afetaria interesses poderosos e, desde o início, Fruet já avisara que não haveria espaço para mudanças.

As emendas aprovadas no Legislativo municipal não mudam, mas reforçam os problemas que já havia na cidade, além de colocar em risco as ressalvas que garantiam qualidade de vida àquela parcela da população de Curitiba que ainda goza dos benefícios promovidos pela regulação do solo. Aliado ao fato de que o processo participativo que garantisse respaldo a uma proposta com respaldo popular, as emendas foram aprovadas fundamentalmente porque a prefeitura perdeu a capacidade de domar o mercado imobiliário e porque o setor encontrou interessados porta-vozes na Câmara dos Vereadores.

A desigualdade e a segregação gerenciadas darão lugar à selvageria do mais forte contra o mais fraco, ao direito como mercadoria ou àquilo que, ironicamente, alguns chamam de liberdade.

José Ricardo Vargas de Faria,
dretor do Senge-PR, é professor do Departamento de Transportes e das pós-graduações em Planejamento Urbano e em Políticas Públicas da UFPR. Artigo escrito com a colaboração, na pesquisa dos dados, da estudante de Engenharia Civil Fernanda Vianna.