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Vendo o grito

A classe política passa a impressão de que viu, mas não ouviu os gritos do povo. Elas provocaram um pequeno ativismo, como que para dar satisfação com atos legislativos, mas sem gestos e leis que permitissem uma revolução que o povo deseja.

As manifestações foram sentidas com a emoção de quem vê o quadro do pintor norueguês Edvard Munch, representando uma pessoa gritando, em cima de uma ponte. O observador pode até sentir o grito que sai daquele rosto transtornado, mas não ouve porque o quadro está em outra dimensão, é uma representação, não é a realidade do grito. Da mesma forma, por indiferença de uns e incompetência de outros, os gritos não foram ouvidos.

Diversos fatos têm mostrado esta insensibilidade. O povo foi às ruas querendo uma reforma radical, uma revolução na maneira como se faz política no Brasil; em vez disso, propusemos uma minirreforma política, e nem ela foi concluída. Nos últimos dias, quase cem parlamentares mudaram de partido, não por discordâncias ideológicas, mas para tirar vantagens dos novos, em troca de oferecer tempo de televisão e dinheiro público do Fundo Partidário.

Ouvir as vozes, em vez de apenas ver a cara dos que estão nas ruas, exigiria, entre outras coisas, proibir coligações no primeiro turno; eliminar os fundos partidários com recursos públicos; proibir financiamento de campanha por pessoas jurídicas e limitar o valor das doações particulares; permitir apenas uma reeleição para todos os cargos eletivos; redefinir a forma de escolha de ministros do STF e do TCU; criação de mecanismos para cassação de mandatos pelo eleitor; possibilidade de candidaturas independentes sem filiação partidária; eleição por voto distrital de vereadores; limitação do horário eleitoral apenas às falas dos candidatos; fim do voto secreto e do voto de liderança, com votação aberta e nominal em todos os casos; adoção de consultas populares por meio de modernas tecnologias de comunicação; perda de mandato do parlamentar nomeado para cargos de ministro e de secretário; fim do recesso parlamentar e instituição de férias de 30 dias para os eleitos; registro dos compromissos de campanha; limitação de benefícios específicos da classe política; considerar falta de decoro o uso de serviços públicos por detentores de mandato; malha fina automática para ocupante de cargo público; e eliminação do foro especial.

Além disso, exigiria reservar 10% das cadeiras da Câmara dos Deputados para eleição em nível nacional; o direito de se desligar do partido que trair seus princípios programáticos; eleição de 40% dos deputados estaduais por distrito, ficando 60% por votação no estado e por lista; e, principalmente, cassação pelo eleitor do parlamentar que deixar de cumprir os compromissos assumidos em campanha, a partir de denúncia subscrita por, no mínimo, 5% dos eleitores.

Estas e outras propostas estão no Senado ou na Câmara dos Deputados em forma de projetos de lei ou propostas de emenda à Constituição, mas não foram consideradas, porque os gritos foram vistos, mas não ouvidos.

Nos últimos 90 dias, centenas de pequenas manifestações foram realizadas, mas essas nem ao menos estão sendo vistas, como se não formassem uma ainda maior que a de junho, sobretudo, pela lógica de que são organizadas como parte de uma imensa guerrilha cibernética do povo na rua, mobilizado pelos métodos que a internet permite.

Cristovam Buarque, professor da UnB, é senador pelo PDT-DF.

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