É comum nos sentirmos constrangidos quando presenciamos alguém que nem conhecemos passar por uma situação embaraçosa. Não fomos nós que esquecemos a letra da canção, maltratamos o garçom ou derramamos vinho nos outros, mas é quase como se tivéssemos sido.
Isso depõe a nosso favor como espécie, guardamos ainda uma solidariedade instintiva que deve ter sido fundamental para a sobrevivência. As grandes manifestações de massa o demonstram, concertos musicais, jogos desportivos, comícios, comemorações, tudo que seja a catarse dos sentimentos das multidões e faça as pessoas se sentirem “uma só”.
Nosso país passa por um de seus momentos mais tristes e embaraçosos, como se tudo que sempre foi afirmado acerca de relações espúrias entre políticos e grandes empresários estivesse se provando agora; como a lama de uma barragem que se rompe e não pode ser contida.
Além de indignados, apreensivos, e até perplexos, ficamos profundamente envergonhados. Nós, a imensa maioria dos cidadãos deste país, não cometemos um só dos crimes de que se fala, não recebemos um único centavo das quantias nababescas que circularam e circulam em malas e depósitos secretos; sustentamos nossas famílias e pagamos nossas contas com o produto de nosso trabalho. E no entanto temos vergonha, já circulam nas redes sociais comentários exagerados sobre a vontade de emigrar, de negar a própria cidadania.
A culpa não é do Brasil, a culpa não é nossa, quem deve se envergonhar são os responsáveis pelos descalabros.
A parte da responsabilidade que nos cabe é ter concedido mandatos e privilégios a essas pessoas para que administrassem, legislassem, fiscalizassem, julgassem, premiassem, punissem em nosso nome; e não ter tido acesso, tempo ou interesse em acompanhar como o faziam, e se o faziam.
O dinheiro da corrupção tem dois destinos principais: o enriquecimento pessoal e as chamadas despesas de campanha, o primeiro está na esfera do roubo simplesmente, os desvios para as tais campanhas – que são roubo também – são justificados candidamente como “declarados à justiça eleitoral” como se esta tivesse poder ou atribuição de lavar dinheiro, e são incluídos em um baú mágico chamado “caixa dois”. Qualquer pequeno empresário flagrado praticando contabilidade paralela será processado, multado e talvez até preso; a partir de que conteúdo a “caixa” passa a ser grande demais para ensejar punição?
A democracia representativa, os Poderes independentes entre si, a imprensa livre e atenta, os cidadãos conscientes; tudo isso constitui o arcabouço necessário de um país civilizado, do país que queremos e merecemos. E é longo o caminho para chegar a ele, começaria pela reforma do sistema eleitoral que permite, e aparentemente até estimula, campanhas eleitorais cada vez mais caras e desligadas da realidade, populismos vários com promessas mirabolantes e inexequíveis, transações tenebrosas com apoios partidários e tempos de TV.
Temos o sentimento de ter sido traídos. Os mais velhos vivemos tempos difíceis de ditadura e de transição para a democracia, seguimos como pudemos as histórias dos que lutaram e até morreram por isso, cultuamos heróis entre os que resistiram ao arbítrio e à censura, admiramos os que mantiveram a fé e o propósito nas prisões e nos exílios, testemunhamos as agruras de uma moeda volátil e a vitória de sua estabilização.
E agora nos sentimos traídos, tanto pelos que diziam pugnar pela liberdade e justiça social quanto pelos que se declaravam arautos da modernidade, e que trocaram liberdade, justiça social e modernidade por um prato de lentilhas, alguns bens suntuários e a ilusão do poder eterno.
Não. A vergonha não deve ser nossa, é deles.