O cenário onde transcorre a primeira parte da tragédia de Maria Antonieta é pintado pela cineasta Sofia Coppola com as cores vivas da libertinagem e da dissipação. Porém, atrás do luxo e do desregramento imperava a hipocrisia, a insinceridade e a dissimulação. A farsa e o burlesco eram tamanhos que somente uma lâmina pesada, precisa e cruel como a guilhotina seria capaz de acabar com tudo aquilo.
O "perdão" pedido à sociedade na véspera da Sexta-Feira Santa pelos controladores de vôo militares só poderia ter sido engendrado em ambiente despojado de qualquer compromisso com a veracidade e o senso de ridículo. Não aconteceu por acaso, fruto de um rasgo de consciência e acesso de culpa.
A forjada humildade foi planejada para desparafusar uma crise de razoáveis proporções, visível a olho nu. A ninguém ocorreu que a sociedade brasileira está hoje razoavelmente informada e que o tosco mea-culpa só poderia funcionar no sentido contrário ao do esperado.
Na Versalhes planaltina olha-se para baixo e só se enxerga uma multidão amorfa, tonta, incapaz de fazer juízos. Erro fatal de quem se acostumou a olhar a vida como uma sucessão de eleições que se ganham com a compra de apoios, truques de retórica e/ou de assistencialismo.
A atual crise não é aérea. Envolve principalmente a Aeronáutica e o Ministério da Defesa, mas nada tem de castrense. Começou com uma tragédia no ar, transferiu-se para os principais aeroportos do país e, há mais de meio ano, domina hegemônica a pauta nacional.
O tal do "apagão" impôs-se às maquinações políticas, revelou as fragilidades da coalizão partidária, desvendou os furos do PAC e sepultou o seu lançamento. O governo ainda não se deu conta do estrago que a turbulência aérea vem causando em todos os níveis. Especialistas em administração o classificariam como exemplo da clássica "crise gerencial", mas a designação é insuficiente porque as falhas de gerenciamento são verticais, superpostas, engrenadas. Tornaram-se sistêmicas, mas decorrem principalmente de um núcleo comportamental onipotente e voluntarista.
O governo tem razão ao constatar que a crise tem inúmeras causas e origens. Mas é preciso lembrar que foi fundamental a demora na montagem da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). Discutida no fim de 2002, durante a transição FHCLula, só foi implantada em meados de 2006 e, mesmo assim, "naquela base": compadrio político, aparelhamento partidário, desprezo pela competência profissional somados a uma ojeriza orgânica ao conceito democrático das agências reguladoras.
Devidamente articulada, a Anac teria evitado pelo menos três dramas (liquidação da antiga Varig, desregramento da Infraero e sucateamento do sistema de controle do tráfego aéreo). Juntos e reforçados, culminaram com a catastrófica colisão na rota Brasília Manaus em 29 de setembro passado.
É evidente que o ministro Waldir Pires ao politizar a tragédia deixando-a fermentar ao longo de um mês (o intervalo entre o primeiro e o segundo turno das eleições), deu uma grande contribuição à formação da bola-de-neve que agora culmina com o hipócrita pedido de perdão emitido pelos controladores amotinados. Outro ministro, mesmo mais bem equipado tecnicamente, não teria desempenho muito melhor.
A certeza messiânica de que tudo vai dar certo resulta, quase sempre, numa sucessão de desacertos fatais que agora se completa com o pedido de "perdão", impertinente e oportunista.
Versalhes, 218 anos depois, é essencialmente um símbolo do absolutismo. O fausto magnificado pelo cinema é complementar. A doidivanas Maria Antonieta perdeu a cabeça, literalmente, porque se tornou a representação de um sistema que pretendia ser infalível. "Depois de mim, o dilúvio", teria dito Luis XV, antecessor do marido de Maria Antonieta. Isso soa contemporâneo.
Governistas querem agora regular as bets após ignorar riscos na ânsia de arrecadar
Como surgiram as “novas” preocupações com as bets no Brasil; ouça o podcast
X bloqueado deixa cristãos sem alternativa contra viés woke nas redes
Cobrança de multa por uso do X pode incluir bloqueio de conta bancária e penhora de bens