Recentemente, a França passou pelo segundo turno das eleições presidenciais, onde a candidata da extrema direita, Marie Le Pen, defendia, entre outras questões, a proibição do uso do véu pelas muçulmanas até mesmo em lugares públicos.
Esse assunto é de suma relevância para a sociedade francesa por conta de alguns aspectos: o primeiro se baseia no fato de a França ter uma extensa tradição liberal, iniciada pela própria Revolução Francesa, onde as questões que envolvem a liberdade e o direito individual, assim como a soberania nacional, são tidas como fundamentais. O segundo é mais prático e tem a ver com o grande número de imigrantes de origem mulçumana que residem no país.
Quando se debate a questão da utilização ou não do véu pelas mulçumanas, existem importantes considerações políticas, ideológicas e filosóficas a serem feitas, que esbarram em debates como o feminismo, opressão e liberdade religiosa. É um terreno espinhoso, em que é preciso tomar cuidado para não cair nas armadilhas das contradições em defesa de seus posicionamentos.
Parte do ocidente traz à luz o debate sobre a utilização do véu ou não por mulheres muçulmanas para falar da liberdade e da opressão masculina. É um monólogo em que não há uma autocrítica.
Dessa forma, é comum vermos pessoas defendendo o direito da mulçumana de não utilizar o véu, mas sem conseguir enxergar as próprias formas de opressão que as sociedades judaico-cristãs exercem sobre o universo feminino. E pior, sem entender que as pautas e lutas das mulheres muçulmanas devem ser definidas pelas mulheres muçulmanas e não precisam de “explicadores” ocidentais sobre aquilo que elas vivenciam.
Assim, é difícil acreditar que a intenção da extrema direita francesa seja garantir a liberdade das mulheres. Cada vez mais, esse grupo não disfarça seus discursos de ódio. O objetivo declarado de Marie Le Pen e seus apoiadores é a preservação da identidade e da cultura francesa.
O que torna o diálogo com esse grupo muito difícil é o fato de que eles partem de uma premissa sem pé na realidade. As sociedades sempre foram e são, cada vez mais, multiétnicas. Franceses são brancos, negros, amarelos, cristãos, muçulmanos, judeus, ateus, gostam de música clássica ou rock, de comer escargot ou hambúrguer.
Toda nação foi construída ao longo da História, a partir de memórias que se relacionam com o tempo presente. Ser francês (ou qualquer outra identidade nacional) não é pertencer a um grupo homogêneo e sim viver em sociedade naquele determinado território inventado e imaginado pelas tradições humanas.
Os grupos que se dizem defensores inabaláveis de identidades nacionais, na realidade, estão defendendo os privilégios alcançados por determinados grupos sociais dentro daquela sociedade.
As sociedades multiétnicas não são necessariamente justas e iguais para todos. Não basta reconhecer essa pluralidade. É preciso apontar os conflitos sociais, culturais, étnicos e de classe que existem e combater os discursos homogeneizadores, que hierarquizam culturas e promovem o ódio.
Na França, Le Pen foi derrotada, mas suas ideias estão cada vez mais fortes e perigosas. Tanto lá quanto aqui, o combate ao ódio não cabe somente nas urnas. É um trabalho árduo e cotidiano em defesa da diversidade.
Renan da Cruz Padilha Soares é graduado em História, mestre em Práticas na Educação Básica e docente da área de Linguagens e Sociedade na Uninter.
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